Em 2018, eu e o Guido Bruno produzimos esta pequena peça para o jornal O Diabo, sobre a África do Sul. Parte desta investigação saiu mais tarde no Primato Nazionale, assinado pelo Guido.
Não foi preciso andar infiltrado. Reportamos aquilo que qualquer um, com o mínimo de curiosidade e sentido de missão, reportaria. A insegurança da comunidade boer, o radicalismo sanguinário do neo-marxismo africano. O país, na altura, não quis saber.
O fim de um sonho – a luta dos agricultores sul-africanos contra o ódio racial
Por Manuel Rezende
Passados cinco anos desde a morte de Mandela e o sonho de uma nação arco-íris já está a desabar na África do Sul. Uma população divida, tensões raciais rampantes e uma crescente cultura de violência contra a população branca marcam a última década daquela que já foi a mais próspera nação africana. A demissão de Jacob Zuma, ex-presidente sul-africano e ex-líder do partido ANC e a eleição de Cyril Ramaphosa, o novo caudilho do ANC, não contribui para esclarecer as dúvidas quanto ao futuro do país.
7 novembro de 2016, Newcastle, província do KwalaZulu-Natal, na África do Sul, Julius Malema (“Juju” para os seus apoiantes), presidente do partido marxista-leninista EFF (Economical Freedom Fighters) e autor do Manifesto “The Coming Revolution” discursa perante os seus militantes. Está de fato e gravata e acabou de se apresentar no tribunal da mesma cidade para responder a acusações de incitação ao ódio e à ocupação hostil das terras dos agricultores brancos.
O que ficou gravado pela televisão nacional, a SABC News, ficou registado para a história e está disponível em formato digital no Youtube – Juju Malema explica a uma massa trajada de vermelho o que vai ser o futuro da África do Sul. Este futuro não passa por Zuma, não passa pelo ANC, não passa pela paz nem pelo compromisso, não passa pelos brancos. A república constitucional já não existe, o parlamento é corrupto, logo a decisão dos tribunais já não é válida nem aplicável. A revolução seguirá em frente, o homem branco vive demasiado confortável há demasiado tempo. “Não estamos a apelar ao massacre da população branca” afirma, “pelo menos não por agora”, seguindo-se à polémica constatação uma geral risada. A acompanhar a arenga às massas, uma multidão sedenta por sangue, vestida na mesma cor, em danças coreografadas a gesticular o cortar de gargantas e o disparar das AK-47.
Os radicais do EFF notabilizam-se pela sua posição extrema em relação à expropriação das terras dos agricultores brancos, mas não são os únicos no país. Entre os grupos mais violentos, o BLF (Blacks First Land First), capitaneado por um dissidente do EFF, Andile Mngxitame, advoga meios ainda mais extremos, organiza ocupações de propriedades e proclama abertamente a inevitabilidade de uma guerra racial.
Enganam-se porém aqueles que julgam que a violação dos direitos dos proprietários é um monopólio dos radicalismos marxistas-leninistas. O eterno partido do governo, o ANC de Nelson Mandela, de Jacob Zuma e agora de Ramaphosa, votou em comício interno no ano de 2017 a necessidade de proceder à expropriação geral sem indemnização. Isso mesmo, não leu mal – a expropriação da classe latifundiária branca deve seguir, urgentemente, em frente e sem o pagamento da devida indemização aos seus proprietários, em nome da redistribuição da terra, da justiça social das classes oprimidas e da imposição da vontade da maioria negra da população. O discurso não é novo e já conheceu nos anos 70 uma versão, com as devidas adaptações, em Portugal.
Mas será que a posição dos brancos na África do Sul é assim tão confortável? A população branca não ultrapassa os 8,1% do total, sendo que deste número a maioria vive em cidades e trabalha no sector terciário. Apenas uma parte desta minoria, cada vez mais desprotegida e cada vez menos representada no parlamento, são agricultores, muitos deles afrikaners, ou seja, descendentes dos grandes movimentos de colonos de ascendência holandesa, inglesa, francesa, alemã, sueca, dinamarquesa, belga e até portuguesa que rasgaram o Trasnvaal e estabeleceram-se essencialmente como agricultores a partir do século XVII e XVIII. Nessas profundezas do sertão africano criaram-se as repúblicas Boers e esta população resistiu corajosamente à aridez do solo, à violência dos campos de concentração genocidas do Império Britânico, à animosidade das tribos indígenas e, mais recentemente, à diáspora criada pela violência racial. Neste momento, os afrikaners são a maioria da população branca na África do Sul e o motor da agricultura nacional.
Povo de gente dura, os agricultores sul-africanos fazem parte do pequeno número de cidadãos pagadores de impostos, numa nação em que 16 milhões de pessoas (30% da população) estão dependentes de gratificações do Estado.
A insustentabilidade da economia sul-africana é reforçada pela escala da corrupção (a expressão “state capture” está generalizada nos media) que colocou todo o aparelho de Estado nas mãos do deposto Jacob Zuma e do clã Gupta, uma família de empresários que enriqueceu às custas do erário público, chegando a contratar a falecida empresa de relações públicas Bell Pottinger para difamar jornalistas que ousem criticar o ANC.
Com vista a extender o seu poder, Jacob Zuma aplicou as técnicas de instabilidade induzida no seio do seu próprio governo, que aprendeu com outros líderes leninistas, como Mao ou Estaline: de 2014 a 2017, nomearam-se 12 ministérios, substituíram-se 125 ministros e procederam-se a inúmeras outras substituições em outros cargos menores, o mais chocante será talvez o cargo correspondente ao de Director Geral da Administração Interna, que já foi ocupado por 180 pessoas diferentes, de acordo com dados do South African Institute of Race Relations.
O sucessor de Zuma, o ex-sindicalista Cyril Ramaphosa, elemento chave nas negociações pacificadoras de Nelson Mandela e actualmente um dos mais importantes milionários do país (tendo estado à frente da McDonald’s da África do Sul), surge nos media internacionais como uma espécie de salvador da pátria, mas os seus contactos obscuros com outros grupos de interesse, assim como suspeitas em relação ao seu abrupto enriquecimento, levantam muitas reservas em sectores mais cépticos que os dos chamados meios oficiais de comunicação.
Hoje em dia, a África do Sul tem a 5ª maior taxa de homicídios do mundo. A insegurança no país é visível nos números: a força policial de 130.000 agentes não merece a confiança da sociedade, que se viu na necessidade de recorrer a serviços privatidos. O que não é de espantar, uma vez que em 2016 o jornal The South African mencionava o desaparecimento de 6.600 armas das mãos da polícia sul-africana desde 2011.
Cerca de 490.000 seguranças privados estão de serviço no país, desde empresas especializadas até a grupos organizados de cidadãos que guardam a tranquilidade dos seus bairros. O esforço pelo policiamento torna-se quase impossível nas zonas rurais, onde a grande propriedade é a única forma de conferir rentabilidade numa terra que está, correntemente, a passar por uma seca grave. Ou seja, não chega a luta diária contra o clima, os agricultores brancos na África do Sul ainda têm de lidar com uma taxa de homicídios 4 vezes superior à da restante população, sendo que a frequência dos ataques chega a um por dia. Na imensidão da planície africana, mulheres e crianças ficam sozinhas e isoladas durante o dia enquanto os maridos vão tratar da lavoura. A maioria dos ataques ocorrem, ao que parece, nas horas mortas do dia, quando os agricultores chegam do trabalho, apenas para se verem cercados de bandos armados com paus, katanas e armas de fogo. É esta a classe opressora que o governo sul-africano persegue, através da carga fiscal, da corrupção endémica e da culpabilização política de todos os males que afectam o estado. O sonho de Mandela parece ter chegado ao fim, mas o pesadelo dos sul-africanos brancos continua muito vivo e o clima de terror não parece atenuar.