quinta-feira, 19 de junho de 2025

Falando sobre História…


É muito comum julgar documentos antigos como a Doação de Constantino ou as Cortes de Lamego como atrevidas falsificações da Igreja Católica para ludibriar os incautos analfabetos dos tempos obscuros da Idade Média. Vamo-nos debruçar sobre isto:


A Doação de Constantino trata-se de um documento criado em 979. Alegadamente datado de 315, o seu suposto autor fora o imperador Constantino. De acordo com a interpretação oficial da Igreja, a Doação visava dotar o Papa de poder temporal para ordenar os bispos da cristandade romana (ocidental e oriental), e para nomear os imperadores. Ao mesmo tempo a Doação garantia à Igreja uma justificação para possuir propriedades e domínio público sobre terras, especialmente sobre a cidade de Roma, assim como o prestigiante direito ao uso da tiara, uma insígnia imperial que a Santa Sé mantém como um dos seus símbolos centrais.

Foi Lorenzo Valla quem demonstrou de forma metódica de que maneira este documento era uma falsificação grosseira, em obra publicada entre 1439 e 1440. Contudo, as dúvidas sobre a veracidade deste documento datam practicamente desde o momento em que deu à luz, no século X.

Imperadores germânicos duvidaram da sua veracidade, teólogos bizantinos negaram-no veemente. Até ao século XV, data da famosa obra de Lorenzo Valla, já vários bispos haviam lançado as suas dúvidas sobre a Doação. 

Então o que justifica o uso da Doação como documento inquestionável de legitimidade política ao longo de 500 anos? A resposta não pode ser somente o prestígio ou o peso político da Santa Sé, uma vez que esse peso e prestígio variaram radicalmente ao longo desses 5 séculos, com pronunciados altos e baixos.

A resposta está na necessidade da legitimidade política. 

As realidades plasmadas na Doação de Constantino já existiam antes desta falsificação circular pela mundo. A Igreja Romana já ordenava os bispos do mundo cristão ocidental. A posse política do centro da Península Itálica por parte do bispo de Roma já era abertamente assumida por todas as potências limítrofes, actuando como uma fronteira política, um estado tampão, entre o norte de Itália controlado pelo novo Império Ocidental dos Imperadores Germânicos e um sul que escapava ao controlo do velho Império de Constantinopla e passava aos poucos para as mãos dos normandos.

A Doação de Constantino reforça a pretensão do Ocidente de se assumir como legítimo descendente de Roma, ao deixar nas mãos do Papa o direito de nomear o Imperador do Ocidente, retirando ao Imperador do Oriente a prerrogativa, já de si altamente questionável, de oferecer ou não ao primeiro as insígnias imperiais. Indirectamente a Doação constitui-se como o documento legitimador de uma realidade já existente e altamente necessária para a estabilidade política do Ocidente, oferecendo uma fonte de legitimidade não só ao Sacro-Império, mas também às nascentes entidades políticas europeias, filhas da instabilidade criada pelas invasões muçulmanas, normandas e magiares. Entre o grupo de nações aqui mencionadas está Portugal, que oficialmente só entra para o clube de reinos reconhecidos após a Bula Manifestis Probatum, outorgada em 1179.

Assim, não interessa que a Doação seja uma falsificação, a realidade política e a necessidade de legitimação fizeram dela uma verdade inquestionável que perdura, de certa maneira, até aos dias de hoje. Afinal de contas, os Papas ainda nomeiam os bispos e ainda usam tiara e ainda é um importante passo para qualquer jovem nação independente ser reconhecida pelo Vaticano como tal.


O mesmo se diga sobre as famosas Cortes de Lamego. A primeira menção às Cortes de Lamego surge em 1632, na terceira parte da “Monarchia Lusitana”, da autoria de Frei António Brandão. A Alexandre Herculano é dado o mérito de estabelecer estas cortes como mitologia, mas já antes de Herculano surgiram autores que questionavam a veracidade das cortes, como José Acúrsio das Neves. 

No século XVIII autores houve em Portugal que, na senda de desvalorizar o valor político das cortes, cuja reunião estava então em desuso e por todos assumida como desnecessária, cara e ineficaz, lançaram dúvidas sobre a veracidade destas Cortes de Lamego.

Mas o que têm estas Cortes de importante? Segundo António Brandão, nestas Cortes os súbditos portugueses haviam lançado o famoso Grito de Almacave,


“Nós somos livres, o nosso Rei é livre, e as nossas mãos nos libertaram.”


Ou seja, uma espécie de proclamação de soberania por parte da nação portuguesa, outorgando-se a si própria a iniciativa e o direito de proclamar a sua independência. As Cortes haviam sido, supostamente, convocadas por Afonso Henriques para legitimar os seus esforços independentistas.

Também durante estas Cortes se fundamentou os princípios da sucessão ao trono, especialmente a obrigatória nacionalidade portuguesa do monarca.

A obra de Brandão contextualiza-se numa época em que o trono português era detido por uma dinastia espanhola.

Terá Brandão inventado esta história das Cortes de Lamego? Não interessa.

A verdade é que a prática política da monarquia portuguesa reafirma os princípios mitológicos das Cortes, tanto antes como depois da publicação da “Monarchia Lusitana”.

Venceu sempre em Portugal o partido que defendia que o reino devesse ser governado por reis portugueses. Veja-se a crise de 1383-85, em cujas bem reais Cortes de Coimbra obervamos, uma vez mais, o papel fundamental destas para legitimar uma nova dinastia, a de Avis, contra a possibilidade duma dinastia castelhana.

Em 1820 as mitológicas Cortes de Lamego vão ser ser usadas para a legitimação do recém-criado Poder Constituinte, reforçando o papel legislativo do Poder Representativo da Assembleia na Constituição de 1822 e nas seguintes. Em 1828 será usada por alguns fiéis de D. Miguel como forma de legitimar o poder do Rei em convocar cortes e para governar à antiga, de acordo com as leis e a Tradição Portuguesa. Outros, da mesma banda, hão de questionar estes mesmos postulados.

Não interessa que as Cortes não tenham existido - a realidade política e a necessidade de legitimação do poder fizeram das Cortes uma realidade inquestionável. Herculano colocou em causa a forma, mas o conteúdo é inolvidável.


Quer isto dizer que os nossos antepassados viviam oprimidos por ficções políticas com origem em falsificações?

Tanto como nós. Nós também vivemos em regimes fundamentados por princípios não só falsos, mas antropologicamente errados.

A realidade demo-liberal sustenta-se nas doutrinas dos contratos sociais de autores como Locke, ou Montesquieu ou Rousseau, para sustentar a legitimidade do poder político democrático. 

Qualquer história da Humanidade, qualquer manual básico de antropologia, comprova facilmente que a sociedade humana não teve início num contrato social.

A estratificação social e hierárquica das primeiras civilizações humanas deu-se de forma orgânica, assumindo várias formas, evoluções, caminhos interrompidos e experiências falhadas.

A ficção política do nosso tempo é a de que o poder político é legitimado pela decisão actualizada das gerações presentes - a democracia, uma espécie de contrato social permanentemente renovado. Ou seja, a nossa falsificação é a de que o poder pode ser exercido legitimamente após um universal concurso de popularidade e que essa legitimidade confere ao vencedor desse concurso o poder para mudar tudo ou quase tudo.

Os nossos antepassados acreditavam que a legitimade política estava amplamente limitada pela Tradição, pela Antiguidade, assim como a Razão e a Justiça das pretensões políticas, que podiam nascer de práticas continuadas ou assumidas pela comunidade como úteis e intemporais, ou seja, que servissem às gerações futuras e honrassem os desígnios das gerações passadas. Para nós conta somente a decisão da geração presente, como se a História e a Política se esgotassem apenas nos que estão presentemente vivos.


Quem vive, então, na maior mentira? 

sábado, 24 de maio de 2025

Cleópatras, primeira parte.


Alexandre Magno teve uma irmã de sangue chamada Cleópatra, filha de Filipe II da Macedónia e Olímpia do Epiro. A julgar pelas más línguas seria esta a única filha que Filipe teve com Olímpia, a julgar pelos rumores que Alexandre seria filho de uma relação extraconjugal entre Olímpia e Nectanabo, ou Natanabo, o exilado faraó egípcio que, derrotado pelas forças do Imperador persa Artaxerxes e procurando guarida na corte macedónica, terá lançado as suas artes mágicas de iniciado nos mistérios de Isis sobre a carismática mulher de Filipe.

Os rumores são infundados, uma vez que o pobre Natanabo fugiu, de facto, da invasão persa após a queda de Mênfis, mas fugiu para a Núbia, de onde liderou, durante pouco tempo, uma ineficaz e insuficiente resistência.

Outra Cleópatra na vida de Alexandre era Cleópatra Eurídice, outra das mulheres de Filipe II, que continuara o velho costume dos reis macedónios da poligamia, algo que muito chocava os helenos mais puritanos. Esta Cleópatra teve dois filhinhos que Olímpia, mãe de Alexandre, tratou imediatamente de despachar desta para melhor, assim como à mãe dos mesmos, assim que Filipe bateu a bota.

Já a Cleópatra irmã de Alexandre teve uma vida interessante enquanto regente do Epiro e da Macedónia, assim como conselheira de seu irmão e agente político após a morte de Alexandre. Teve um fim trágico, assassinada por uma das suas damas de companhia, um fim muito em voga naqueles tempos conturbados.

Cleópatra, sendo um nome helénico, traduzindo-se literalmente por "glória do pai", está presente na mitologia antiga, como filha de Bóreas, o vento norte, e de Tros, rei fundador de Tróia.

O nome conheceu óbvia popularidade entre a nobreza macedónica, uma vez que o encontramos repetido até à exaustão entre as filhas dos diversos sucessores de Alexandre Magno, quer entre os Selêucidas, os Antigónidas ou os Ptolomeus.

O nome acabou por ser adoptado pelas populações submetidas pelo mundo helénico, como é visível no caso de Cleópatra de Jerusalém, mulher de Herodes, dito "o Grande", o monarca da narrativa bíblica. Até mesmo o nome Herodes é de origens gregas, apesar das origens do famoso monarca dos judeus serem árabes, tanto do lado materno como paterno.

É claro que não se pode falar de Cleópatra sem mencionar a mais famosa de todas as Cleópatras, a amante de Júlio César, esposa de Marco António, magistralmente representada na famosa e homónima peça de Shakespeare, personagem principal em quase todos as obras que versam sobre o período em que viveu. Cleópatra IV Filopater foi a última faraó na história do Egipto e a última soberana da dinastia de Ptolomeu a governar sobre o Egipto. A sua irmã, Cleópatra II Selene, governou após a morte da irmã sobre a Mauritânia, junto com o rei Juba da Numidia, criando por aquelas bandas um estado modelo em gestão económica e administração política, ainda que vassalo de Roma. É com esta última Cleópatra que morre a dinastia dos Ptolomeus, uma vez que a sua descendência será dizimada por Calígula e a Mauritânia incorporada no estado romano por Cláudio.



domingo, 18 de maio de 2025

Carta escrita no avião

 Carta aos meus filhos Lourenço e Álvaro 


Meus queridos meninos,


Escrevo-vos esta pequena carta a pensar no que preciso vos dizer caso não possa cá estar para falar convosco. Lourenço, meu pequeno tourinho, tão pequenino e já tão cheio de carácter, penso todos os dias no teu sorriso rasgado e na tua disposição alegre. Tens um efeito especial nas pessoas, iluminando qualquer sala com a tua alegria contagiante, a tua presença bondosa, o teu carinho de menino espevitado. Hoje acordei a pensar, quase em lágrimas, na alegria que tenho em saber que daqui a umas horas te vou abraçar. 

Meu Álvaro, meu menino. Como estou ansioso por te conhecer. Como te amam os teus papás, que te fizeram no amor de Cristo e te querem tanto, tanto, tanto. Ainda não sei como és, meu narizinho pontiagudo, mas já sou teu pai, sempre fui teu pai, serei sempre teu pai. És, como o teu irmão, o fruto doce de um grande amor, aquele que nutro pela tua mãe, que é a melhor coisa que Deus me pôs nesta vida. 

Ficam a saber os dois que qualquer que seja o destino que calhe ao vosso pai, ele é o homem mais sortudo desta terra, porque vos tive e, especialmente, porque vos tive da vossa mãe. Todos os dias agradeço à Providência ter-se enganado tanto a ponto de pensar que um desgraçado como eu mereça alguém como a vossa mãe.


Meus queridos meninos, quero muito que aprendam algumas coisas que eu aprendi nesta vida e que vos quero transmitir, mas que posso, por algum desígnio desconhecido, não ter como vos ensinar.


Primeiro, que devem amar a Deus acima de todas as coisas, porque amar a Deus torna-nos capazes de amar os outros com todo o nosso coração. Quando Deus não está primeiro, não se ama. Amar a Deus torna-nos capazes de entender as falhas dos homens, as suas traições, as suas mediocridades, a sua mortalidade, o inevitável fracasso de todas as coisas humanas. Tudo nesta vida que não dependa do amor de Deus vai acabar por morrer e importa tanto, no esquema superior das coisas, como o pó da rua.


Segundo, que devem amar a vossa Madre Igreja Católica, Apostólica e Romana.

Esse é o designio que os vossos antepassados vos legaram e que herdastes pelas juras e prometimentos dos cavaleiros, doutores, lavradores, pais e mães e avós de quem descendem. É fácil amar as coisas que nos estão por baixo, como os cãezinhos, os gatinhos, os amigos, o clube de futebol, o partido, etc. Difícil é amar aquilo que nos é superior, como a Deus e à Sua Igreja, que é representada tantas vezes por homens desagradáveis ou injustos. O Amor, contudo, tudo tolera e tudo vence.


Terceiro, saibam que o vosso pai foi monárquico e leal à Fidelíssima Casa de Bragança, mas que compreendo muito bem que a vossa sensibilidade ou o vosso sentido de oportunidade vos leve a seguir um caminho diferente. Acima de tudo, o inegociável é a nossa lealdade a Portugal. Seja um rei, um presidente, um komintern ou um sinédrio, nunca desonrem este vosso velho nome com outras alianças que não as que tenham o máximo interesse da Pátria como fundamento. Lembrem-se que o pior inimigo é sempre o traidor.


Quarto, lembrem-se desta prática máxima de “quando em dúvida, a Caridade. No fundamental, a Fé.”

Ou seja, mantenham um núcleo pequeno de principios inegociáveis que vos definam como homens e como cristãos. Em tudo o mais, pratiquem caridade e o amor ao Próximo como Cristo nos mandou no Sermão da Montanha. Que os vossos valores sejam como o ovo estrelado - no centro uma gema bem amarela, quase laranja, os vossos valores bem definidos e bem sustentados, partir dos quais não arredam o pé, de onde se quebra antes de torcer. Tudo o resto é a clara, ou seja, aquilo que podem negociar, os compromissos que podem fazer, o mundo onde hão-de gravitar a maior parte das vossas decisões.


Quinto, que sejam amigos um do outro. Se o amor de Mãe e de Pai são prendas divinas, o amor de um irmão é a ferramenta essencial para uma vida feliz. Não há ninguém em quem eu mais confie que nos meus irmãos. Sejam amigos um do outro e vão ver que nunca estarão sós perante o mundo.


E acima de tudo, obedeçam à vossa mãe e dêem-lhe sempre muitos beijinhos, todos os que o papá não conseguiu dar.

Ter uma mãe é a maior bênção deste mundo e a vossa é superior a todas.

Ânimo e coragem, e agora vou fechar o texto que o avião vai descolar e vou estar em breve nos vossos braços. 



Do vosso pai,


Manuel


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Sobre faltar às aulas

Quando as pessoas falam em instrução pública, falam sem saber que se trata de uma das maiores enormidades da história da humanidade. A partir do momento em que se estabeleceu, a Escola mudou para sempre mentalidades e paisagens, submetendo-a à vontade do Estado.

Os jacobinos franceses usaram a Escola Pública para matar a velha França medieval em toda a sua diversidade cultural e linguística, para propagar o seu francês parisiense e os seus ideais revolucionários. Em poucas décadas, o dito francês "cosmopolita", falado em 1789 por pouco menos de 20% da população do Reino da França, passou a língua materna da generalidade dos franceses a viver na República Francesa, no ano de 1850.

Ao contrário do se prega, os governos que passaram pela primeira Revolução Industrial, especialmente o inglês, já em 1832 preocupavam-se com a educação dos petizes que laboravam nas fábricas. A ideia era retirar aos pais a educação das crianças, para criar trabalhadores mais bem formados, quadros mais especializados e capazes. Gente que não mandriasse, que mantivesse os pés bem assentes na terra, que o que importava era trabalhar e bem servir o patrão, para subir na vida e na carreira.

O velho Mao Zedong ensinou o povo chinês a ler para que este pudesse ler o seu Livro Vermelho. A instrução escolar não foi criada para dar ferramentas intelectuais, como a velha escolástica medieval ou a cultura intelectual greco-romana - foi criada para incentivar os indivíduos à obediência, para criar bases pedagógicas para a submissão.

Já a empregada de Agostinho da Silva, segundo nos dizia o filósofo de Barca D'Alva nascido no Porto, dizia que não queria aprender a ler para não ter de "saber das mentiras que eles contam nos jornais".

Quando a Esquerda se queixa do suposto obscurantismo da política educativa de Salazar (o que é falso, os números indicam a maior descida na taxa de analfabetismo da nossa história) está a dar tiros nos próprios pés.

Foi a Educação de Abril que terminou o serviço de controlo estatal das mentes e dos corações a partir da pedagogia pública. Os últimos resquícios de pensamento local, de sabedoria tradicional, foram destruídos em menos de 40 anos de educação "democrática". O português comum não assume uma mentalidade local (além do conceito de rivalidade clubística ou bairrista), substituindo-a por conceitos abstractos de igualdade, profissionalismo e cidadania (que não lhe servem para nada a não ser para conversa fiada, ou pior, para o enganar) e por conceitos bastante concretos de consumismo puro e duro, em que os seus únicos objectivos são os de amealhar, satisfazer-se e não fazer ondas. Vivemos na era da paz social, na era sem tumultos nem motins, não porque as democracias satisfazem os cidadãos de maneira exponencial, mas porque todos fomos ensinados pela Educação Pública a ser bons meninos e meninas e a não levantar ondas.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

A lei da Katana

 Em 2018, eu e o Guido Bruno produzimos esta pequena peça para o jornal O Diabo, sobre a África do Sul. Parte desta investigação saiu mais tarde no Primato Nazionale, assinado pelo Guido.

Não foi preciso andar infiltrado. Reportamos aquilo que qualquer um, com o mínimo de curiosidade e sentido de missão, reportaria. A insegurança da comunidade boer, o radicalismo sanguinário do neo-marxismo africano. O país, na altura, não quis saber.



 

O fim de um sonho – a luta dos agricultores sul-africanos contra o ódio racial

Por Manuel Rezende

Passados cinco anos desde a morte de Mandela e o sonho de uma nação arco-íris já está a desabar na África do Sul. Uma população divida, tensões raciais rampantes e uma crescente cultura de violência contra a população branca marcam a última década daquela que já foi a mais próspera nação africana. A demissão de Jacob Zuma, ex-presidente sul-africano e ex-líder do partido ANC e a eleição de Cyril Ramaphosa, o novo caudilho do ANC, não contribui para esclarecer as dúvidas quanto ao futuro do país.

7 novembro de 2016, Newcastle, província do KwalaZulu-Natal, na África do Sul, Julius Malema (“Juju” para os seus apoiantes), presidente do partido marxista-leninista EFF (Economical Freedom Fighters) e autor do Manifesto “The Coming Revolution” discursa perante os seus militantes. Está de fato e gravata e acabou de se apresentar no tribunal da mesma cidade para responder a acusações de incitação ao ódio e à ocupação hostil das terras dos agricultores brancos.

O que ficou gravado pela televisão nacional, a SABC News, ficou registado para a história e está disponível em formato digital no Youtube – Juju Malema explica a uma massa trajada de vermelho o que vai ser o futuro da África do Sul. Este futuro não passa por Zuma, não passa pelo ANC, não passa pela paz nem pelo compromisso, não passa pelos brancos. A república constitucional já não existe, o parlamento é corrupto, logo a decisão dos tribunais já não é válida nem aplicável. A revolução seguirá em frente, o homem branco vive demasiado confortável há demasiado tempo. “Não estamos a apelar ao massacre da população branca” afirma, “pelo menos não por agora”, seguindo-se à polémica constatação uma geral risada. A acompanhar a arenga às massas, uma multidão sedenta por sangue, vestida na mesma cor, em danças coreografadas a gesticular o cortar de gargantas e o disparar das AK-47.

Os radicais do EFF notabilizam-se pela sua posição extrema em relação à expropriação das terras dos agricultores brancos, mas não são os únicos no país. Entre os grupos mais violentos, o BLF (Blacks First Land First), capitaneado por um dissidente do EFF, Andile Mngxitame, advoga meios ainda mais extremos, organiza ocupações de propriedades e proclama abertamente a inevitabilidade de uma guerra racial.

Enganam-se porém aqueles que julgam que a violação dos direitos dos proprietários é um monopólio dos radicalismos marxistas-leninistas. O eterno partido do governo, o ANC de Nelson Mandela, de Jacob Zuma e agora de Ramaphosa, votou em comício interno no ano de 2017 a necessidade de proceder à expropriação geral sem indemnização. Isso mesmo, não leu mal – a expropriação da classe latifundiária branca deve seguir, urgentemente, em frente e sem o pagamento da devida indemização aos seus proprietários, em nome da redistribuição da terra, da justiça social das classes oprimidas e da imposição da vontade da maioria negra da população. O discurso não é novo e já conheceu nos anos 70 uma versão, com as devidas adaptações, em Portugal.

Mas será que a posição dos brancos na África do Sul é assim tão confortável? A população branca não ultrapassa os 8,1% do total, sendo que deste número a maioria vive em cidades e trabalha no sector terciário. Apenas uma parte desta minoria, cada vez mais desprotegida e cada vez menos representada no parlamento, são agricultores, muitos deles afrikaners, ou seja, descendentes dos grandes movimentos de colonos de ascendência holandesa, inglesa, francesa, alemã, sueca, dinamarquesa, belga e até portuguesa que rasgaram o Trasnvaal e estabeleceram-se essencialmente como agricultores a partir do século XVII e XVIII. Nessas profundezas do sertão africano criaram-se as repúblicas Boers e esta população resistiu corajosamente à aridez do solo, à violência dos campos de concentração genocidas do Império Britânico, à animosidade das tribos indígenas e, mais recentemente, à diáspora criada pela violência racial. Neste momento, os afrikaners são a maioria da população branca na África do Sul e o motor da agricultura nacional.

Povo de gente dura, os agricultores sul-africanos fazem parte do pequeno número de cidadãos pagadores de impostos, numa nação em que 16 milhões de pessoas (30% da população) estão dependentes de gratificações do Estado.

A insustentabilidade da economia sul-africana é reforçada pela escala da corrupção (a expressão “state capture” está generalizada nos media) que colocou todo o aparelho de Estado nas mãos do deposto Jacob Zuma e do clã Gupta, uma família de empresários que enriqueceu às custas do erário público, chegando a contratar a falecida empresa de relações públicas Bell Pottinger para difamar jornalistas que ousem criticar o ANC.

Com vista a extender o seu poder, Jacob Zuma aplicou as técnicas de instabilidade induzida no seio do seu próprio governo, que aprendeu com outros líderes leninistas, como Mao ou Estaline: de 2014 a 2017, nomearam-se 12 ministérios, substituíram-se 125 ministros e procederam-se a inúmeras outras substituições em outros cargos menores, o mais chocante será talvez o cargo correspondente ao de Director Geral da Administração Interna, que já foi ocupado por 180 pessoas diferentes, de acordo com dados do South African Institute of Race Relations.

O sucessor de Zuma, o ex-sindicalista Cyril Ramaphosa, elemento chave nas negociações pacificadoras de Nelson Mandela e actualmente um dos mais importantes milionários do país (tendo estado à frente da McDonald’s da África do Sul), surge nos media internacionais como uma espécie de salvador da pátria, mas os seus contactos obscuros com outros grupos de interesse, assim como suspeitas em relação ao seu abrupto enriquecimento, levantam muitas reservas em sectores mais cépticos que os dos chamados meios oficiais de comunicação.

Hoje em dia, a África do Sul tem a 5ª maior taxa de homicídios do mundo. A insegurança no país é visível nos números: a força policial de 130.000 agentes não merece a confiança da sociedade, que se viu na necessidade de recorrer a serviços privatidos. O que não é de espantar, uma vez que em 2016 o jornal The South African mencionava o desaparecimento de 6.600 armas das mãos da polícia sul-africana desde 2011. 

Cerca de 490.000 seguranças privados estão de serviço no país, desde empresas especializadas até a grupos organizados de cidadãos que guardam a tranquilidade dos seus bairros. O esforço pelo policiamento torna-se quase impossível nas zonas rurais, onde a grande propriedade é a única forma de conferir rentabilidade numa terra que está, correntemente, a passar por uma seca grave. Ou seja, não chega a luta diária contra o clima, os agricultores brancos na África do Sul ainda têm de lidar com uma taxa de homicídios 4 vezes superior à da restante população, sendo que a frequência dos ataques chega a um por dia. Na imensidão da planície africana, mulheres e crianças ficam sozinhas e isoladas durante o dia enquanto os maridos vão tratar da lavoura. A maioria dos ataques ocorrem, ao que parece, nas horas mortas do dia, quando os agricultores chegam do trabalho, apenas para se verem cercados de bandos armados com paus, katanas e armas de fogo. É esta a classe opressora que o governo sul-africano persegue, através da carga fiscal, da corrupção endémica e da culpabilização política de todos os males que afectam o estado. O sonho de Mandela parece ter chegado ao fim, mas o pesadelo dos sul-africanos brancos continua muito vivo e o clima de terror não parece atenuar.

domingo, 23 de maio de 2021

Dalila Pereira da Costa, "Raízes arcaicas da epopeia portuguesa e camoniana"

Em Creta, uma religião de fundo feminino, ctónico, aquático, haverá, com uma estimativa não-racional da vida, um halo de doçura e não-violência, que ao nível das relações humanas, colectivas e históricas, se revelaria pela forma como foi levada a cabo uma talassocracia. Cultura e religião marcadamente matriarcal e telúrica, toda ela surgirá dum carácter profundamente emotivo e passional: esse carácter levando a alma dos homens ao limite do extático, como ponto de transcensão do humano e terrestre. Segundo o testemunho de Diodoro, a religião dos cretenses, adoptava a forma das religiões de 《mistérios 》, que, posteriormente, os gregos arianos haveriam de repudiar. E será essa religião a que na Grécia, se prolongará pelo orfismo, culto de Dionísio e culto de Deméter em Elensis. Preferentemente realizando-se entre deuses e homens, vida e morte, passado e futuro, terra e céu, uma relação mais pelo sentimento do que por actos formais e pela abstracção - o destino dos homens nunca sendo desligado do destino dos deuses que, como filhos da terra e do céu, serão passíveis de nascimento, paixão e morte: essa solidariedade realizando-se entre o céu e a terra, nos liames duma religião de salvação. Será esse fundo pré-helénico, como cosmovisão e experiência da vida articulada numa estrutura perfeita, complexa e coerente, toda ela criando uma específica idade e civilização dos homens, a Idade do Bronze mediterrânica, aquela que os aqueus, ao transportarem-na para o continente, haveriam de posteriormente preterir e depois os dórios, substituir de todo por uma religião patriarcal e urânica sob a égide de Zeus, depois na época greco-latina, fundamentalmente racionalizada, humanizada, formal e desmistificada.

Mas na Europa, outro espaço teria havido, comsagrado para perseverar a herança duma civilização matriarcal pré-ariana e de sua religião: para além de Eleusis, da Grande-Grécia, Sicília, Trácia, Golfo de Sirte... como outro espaço depositário e depois ainda transmissor dessa herança, surge a 《ocidental praia lusitana》: como espaço limite da Europa, 《onde a terra se acaba e o mar começa》, situado sobre um abismo, o do mar primordial, Mar Tenebroso; sobre ele e depois para além dele, Portugal teria aqui preservado uma alma antiga, de todo destruída ou negada no resto do Ocidente: e depois a teria feito transitar, a mesma a outra, porque transmutada, para além desse mar.

Será o carácter duma civilização pré-indo-europeia, aquele que marcadamente se continuará e comfirmará em toda a Tradição em Portugal e sua expansão no Mundo.

Perseverando no extremo do Ocidente e depois por si levando a todos os continentes uma religião naturalista, mas a um tempo unindo imanente e transcendente, evoluída e envolvida num alto e complexo simbolismo, tal como aquela uma vez criada em Creta, surgindo no seu todo ainda como uma religião estruturada sob a égide da Mãe-Divina como poder supremo sobre o mundo animal, vegetal e dos homens, dos mortos e dos vivos, do céu e da terra e dos infernos, e em que o terror da morte fora abolido por uma visão totalizante e amante da vida - serão esses os sinais testemunhados na antiga civilização pré-helénica, os que, semelhantemente, marcarão ainda outra civilização e talassocracia, agora a partir, não do Mediterrâneo, mas do Atlântico, a lusíada. E fundando-se ainda, no período do seu esplendor, na amenidadr e fraternidade entre os homens, sob a protecção da Virgem e do Menino Redentor - como novas formas da Grande-Deusa e da Criança Divina.

domingo, 4 de abril de 2021

As influências semíticas no culto do Sol Invictus

 "Durante a anarquia do século III, o movimento que tendia a divinizar o Imperador em vida acentuara-se. Todos os Príncipes desse tempo se faziam representar nas moedas com uma coroa resplandescente na cabeça, o que exprimia a pretensão de serem considerados divindades solares. É muito provável que esta ambição, já sensível em Nero - e da qual podemos distinguir marcas no apolonismo de Augusto - se tenha visto reforçada, sobretudo depois de Elagábalo, pelos Severos, cujas ligações sírias explicam o misticismo e atracção particular pelo deus Sol de Emeso. Aureliano criara oficialmente em Roma um culto do Sol, cujo templo magnífico ultrapassava em extensão o das velhas divindades nacionais. Nessa época, o Sol, astro benéfico por excelência, é o grande deus da religião sincrética em que se misturam crenças masdeístas e semíticas e o Imperador, identificando-se com ele, afirma-se como Pantocrator, senhor do universo, de todo o cosmo."



Pierra Grimal (A Civilização Romana)


Na imagem: apesar de o culto ao deus Sol já existir em Roma desde os tempos da República, foi Aureliano que instituiu o culto do Sol Invictus incutindo-lhe elementos do culto de Malakbel (aramaico para "mensageiro de Baal"), deus-sol dos povos semitas nabateus, aqui visível à direita, contextualizado na tríade divina que o acompanha, o deus lunar Aglibol e o deus celestial Baalshamin.

Estela encontrada em Palmira, datada do século I d. C.

domingo, 8 de novembro de 2020

O Terrorismo e a Cobardia

 

1. O Terrorismo

Esta semana lembrei-me da história do aristocrata polaco que descrevia aos seus amigos o saque que as tropas soviéticas haviam feito ao seu solar. A biblioteca queimada, obras de arte destruídas, tudo em nome do vandalismo da tropa fandanga. Tudo isso o nobre polaco entendia, pois também tinha sido soldado e esses desmandos não lhe eram estranhos.

Aquilo que o chocou e humilhou até às lágrimas foi o terror infligido pela pura maldade da ocupação soviética: uma estátua da Virgem Maria decapitada e com as mãos decepadas.

A destruição do sagrado pela tropa de choque do laicismo é agora feita nas escolas pelos autómatas a que chamam, para gáudio dos fingimentos, de “professores”, repetida pelos alunos nas ruas das cidades e no saque das Igrejas e na destruição dos lugares sagrados.

Samuel Patty, o professor decapitado em França por um muçulmano salafita, era um desses autómatas. Tinha mostrado na sua sala de aula os tais cartoons desinspirados que um cartoonista dinamarquês fez sobre o profeta Maomé, o profeta do Islão. Assim como para um católico a Virgem Maria é a imagem da pureza e da generosidade, a Mãe Divina de toda uma comunidade religiosa, também o Profeta é o elo de nobreza e virtude que une os pilares do Corão e, por conseguinte, a fibra moral das famílias e das comunidades islâmicas.

O laicismo que cortou os braços à virgem na Polónia foi o mesmo que desonrou o Profeta na Dinamarca. É o laicismo destructivo que pretende demolir tudo o que é sagrado e reduzir os Homens a um ideal e a riqueza do mosaico das Tradições pelo betão ateu. A morte de Samuel Patty é a morte do ideal iluminista, Ideal esse claramente insuficiente para os Povos que mantêm como seu direito inalienável a religião dos seus antepassados.

Esse laicismo radical cumpre-se na Revolução Universal, na imposição dos seus valores a todos os povos da Terra.

A sua morte é também a morte do multiculturalismo, a utopia que propõe criar, sobre os ombros de diferentes culturas, uma “super-cultura” cujos ideias sejam seguidos por todos. Uma “super-cultura” que mais não é do que a Boa Nova do Laicismo, propagada a todos os povos, uma espécie de Culto Imperial dos tempos modernos. Como dantes Roma permitia a liberdade de culto, desde que as religiões locais se vergassem ao culto dos imperadores romanos, também o laicismo permite a “liberdade religiosa”, desde que os valores laicos se lhe sobreponham.

Ironicamente, o terrorismo islâmico é um subproduto dessa cultura nascida a Ocidente. O Islão foi importado para a Europa em grandes quantidades com o fim de afogar o cristianismo, sob o disfarce de um diálogo interreligioso que pretendia confundir as diferenças entre cada religião e a sua fusão numa teologia de ecumenismo oco, numa religiosidade subserviente aos valores desse mesmo laicismo. Agora insurge-se o islamismo salafista na reacção mais radical aos “valores ocidentais” e escolhe como alvo não só o cristianismo mas também, irónicamente, o laicismo que ainda o protege.

2. A Cobardia

Que tipo de homem é que avança para matar outro, com uma faca na mão, quando este se encontra desarmado? Que honra se terá feito ao Profeta com a morte um pobre professor assustado? Que honra terá o Profeta ou o seu Deus recebido com a decapitação de uma senhora idosa numa Igreja em França? E do esfaqueamento de outras pessoas? E de tantas outras violências contra pessoas indefesas?

Só nos prova que o Islão destes “radicais” é um Islão de cobardes. Que um homem tenha a morte no olhar, compreendo. Agora que levante a mãe em fúria para quem não se sabe ou pode proteger? Isto é pior que terrorismo, é cobardia.

Que homem pode destruir um crucifixo, ou decapitar uma estátua da Virgem, ou desgraçar para sempre uma imagem com a Senhora segurando o Menino nos braços, a forma mais pura da ternura familiar? Que homem queima uma Igreja, onde se baptizam crianças, onde mães e pais acompanham os seus bebés e apresentam-nos perante Deus e os seus? Onde as famílias nascem no casamento e onde nos despedimos dos que partem nos funerais? Isto é pior que terrorismo, é cobardia.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Fratelli Tutti

 A encíclica papal Fratelli Tutti constitui um dos mais interessantes exercícios de doutrina social da Igreja e um dos documentos mais corajosos da Santa Sé.

A menção às consequências negativas da exploração capitalista, aos sofismas populistas que hoje em dia passam por "alternativas políticas", não são novidade no discurso do papa e são advertências que os cristãos devem ouvir e receber.

O papa recorda-nos das nossas velhas tradições jurídicas e afasta-nos para longe do individualismo liberal, que considera a propriedade privada como base da nossa civilização, trazendo-nos de volta aos princípios basilares herdados de Roma e Jerusalém:


"Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada».[95] O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»."


O documento leva-nos a reflexões importantes, como a que cada país deve chegar ao seu modelo de desenvolvimento e que não deve haver apenas um modelo, o modelo anglo-saxónico de capitalismo liberal ou o modelo germânico de socialismo de estado, a prevalecer:


"Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como modelos culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos valores da sua própria cultura."


No capítulo da defesa dos refugiados e dos desprotegidos, recordou-nos o Papa do dever de cada um no auxílio ao Próximo e no debelar dos grandes sofrimentos causados pelas guerras e pelas fomes, mas o Papa foi mais longe que qualquer comunicado oficial ao recordar o mal do tráfico humano perpetrado por muitas das ONG que se dizem humanitárias:


"Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis»."


Não é todos os dias que vemos reconhecida, em público, a existência destas organizações envolvidas no tráfico de migrantes.

Outro ponto interessantíssimo e vanguardista é o reconhecimento da presença dos lobbies de Silicon Valley no controlo da informação:


"Não se pode ignorar que «há interesses económicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático."


E se muitos acreditam que o Papa promove uma agenda de autodestruição, deixo aqui outras citações:


"Não se trata daquele falso universalismo de quem precisa de viajar constantemente, porque não suporta nem ama o próprio povo. Quem olha para a sua gente com desprezo, estabelece na própria sociedade categorias de primeira e segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos."

"Também não estou a propor um universalismo autoritário e abstrato, ditado ou planificado por alguns e apresentado como um presumível ideal para homogeneizar, dominar e saquear. "


Muitas outras coisas podiam ser ditas deste documento, um documento que combate as mentiras do liberalismo, do progresso imparável, do domínio da tecnologia sobre o homem e assume as verdades cristãs da Piedade e do Amor sobre todas as coisas. 

Para mim, que o li, aconselho aos que não o leram, que o façam com olhos de ler, não com olhos de criticar. É difícil, tal a poluição literária que nos invade, mas é um exercício possível a mentes honestas.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Municipalismo entre Teixeira de Pascoaes e António Sardinha: Mitologias e Identidades

A palavra cantada – Pátria e Memória na poesia de Pascoais e Sardinha

            Como alguns dos leitores mais velhos devem recordar-se, a lareira ocupou em tempos um lugar proeminente na composição da sala e no quotidiano da família portuguesa. As lareiras desempenhavam a função essencial de aquecer casas, corpos e corações, facilitando a criação de um lar e comida quentes. Era também à volta da lareira que muitas famílias se reuniam para, especialmente nos dias mais frios do ano, conviver, relatar as façanhas do dia-a-dia, relembrar as velhas glórias, aconselhar os mais novos e acomodar os mais velhos. Hoje em dia, perante as soluções disponíveis que nos protegem do frio, do escuro e até do tédio, a lareira vê-se encostada a um canto da sala, quando existe sequer, muitas vezes para efeito puramente estético, substituída na sua essência pela alienação egoísta da televisão.

            Espaço místico e simbólico, a lareira é a representação do lar doméstico, local das primeiras cogitações, das primeiras experiências, dos momentos fundadores de homens e povos. É Teixeira de Pascoaes quem a define:

É o ambiente da Intimidade profunda, do divino Alheamento, em que a minha alma, cantando baixinho, parece adormecer alguém que vive afflicto. Em ti, ó velha lareira, suja de cinza e fumo, pelos montes de inverno, eu sinto que vivo, e a sombra que projecto ao clarão do teu fogo, sorri, voltado para Deus...[1]

As lareiras das casas antigas assistem ao passar das gerações unidas à volta do fogo, unindo as gerações do presente ao passado, marcando a própria geografia e, assim, o próprio Poeta:

O fumo das lareiras, no ar, se eleva

E toma negro vulto a fria terra.

E vejo-a desgastar a minha imagem,

E faleço nas sombras da paisagem.[2]

Sardinha e Pascoaes

Qual é a validade de, nestas primeiras décadas do século XXI, sentar Pascoaes e Sardinha à mesma lareira, conduzindo o seu diálogo num tom de amistosa concordância, como se se tratassem de dois anciãos a contar histórias aos mais novos?

Apesar das diferenças fundamentais entre o pensamento do fundador do Integralismo Lusitano e o fundador da Renascença Portuguesa, podemos notar nas suas obras e nos seus artigos n’A Nação e n’A Águia, respectivamente os órgãos de comunicação oficiais dos movimentos que encabeçavam, assim como noutros jornais e revistas, vários pontos em comum que uniam os seus nacionalismos. O folclore, a paisagem e a identidade local estão entre esses ingredientes que ambos autores propunham como essenciais para reabilitar uma pátria que acreditavam estar em desesperada necessidade de renascer.

Este renascimento impunha um retorno às origens, no sentido de voltar ao trabalho da terra, na memória dos primeiros povoadores da era afonsina

Voltemos à raiz! E ao chão lavrado

Sobre o que houver de Portugal passado

Que Portugal de novo se edifique.[3]

O exercício implica não um retrocesso civilizacional, mas a redescoberta de um caminho ou experiência de pendor místico e até religioso[4]

Parte! Regressa, enfim, ao Paraíso!

Culltivarás aquela terra antiga

Com as tuas próprias mãos, restituindo-a

Ao primitivo e mágico esplendor.

A terra, repleta de significado e de personalidade, ensina ao Poeta os segredos da Identidade e da Memória, memória essa que não está somente confinada a uma religião ou a um grupo selecto, mas a um todo que define a comunidade.

Paul Ricoeur definiu três fragilidades da identidade: a fragilidade face ao tempo, de onde surge a necessidade do recurso à memória ou ao esquecimento, a fragilidade face ao outro, de onde surge o contacto hostil e a fragilidade da herança da fundação violenta, própria, por exemplo, das comunidades nascidas da guerra, evento que constitui para uns glória e, para outros, humilhação[5]. Sardinha, no poema Évora-Cidade, procurou um compromisso com o passado da cidade alentejana, para além das suas raízes cristãs e muçulmanas, num canto que remetesse para a origem e para a energia continuadora da Raça e para a promessa de um futuro salvífico e divino

Sobre o Crescente e a Cruz, atrás do arado

A Raça canta sempre e ainda espera.

Cheia de fé, semeia. E o grão sagrado

Muda-lhe a esperança em pão abençoado

Por cada primavera.[6]

 

Sobe da estepe, quando a relha a corta,

Não sei que incerta voz, que enlevo esparso.

É cinza heróica, são ossadas nuas,

Toda a grandeza morta,

Rimando a intrepidez do velho sangue

Com o furor fecundo das charruas.

(...)

Deus quis-te bem, ó Évora-cidade!

Serás na eternidade

A salvadora mística do Mundo

A mística Jerusalém terrestre![7]

Vale a pena ter em conta este aspecto de mestiçagem, mesmo num autor que não se coibiu, em outros escritos, de criticar a mistura entre raças. Em Sardinha, a palavra Raça tem muito de étnico, mas nem por isso o Amor, naquilo que o cristianismo lhe emprestou de universal, se deixa de manifestar na sua poesia

De manhãzinha

Irão casar moiras e cristãos.[8]

A Terra, a Paisagem. Elementos de um todo superior, de uma pátria que está para além dos símbolos mais óbvios, mais toscos, dos regimes políticos e das religiões estabelecidas. Elementos que estão vivos – não servem apenas para ser cantados, brandidos como um escudo. São forças que falam, mas que também ouvem.

Árvores da minha aldeia,

Eu quero-vos contar a minha História,

Quando vem do Marão a lua cheia

Do fio luz marmórea.[9]

 

Há certos sítios da alma consagrados

E da tua lembrança alumiados

É ali que vou rezar as minhas preces.[10]

 

            O crescente mal-estar que percorre a europa, ao longo da fase final do século XIX, numa onda de descontentamento face às instituições liberais que se popularizaram um pouco por todo o velho continente desde o ínicio de século, levou à procura de novas soluções para ultrapassar os defeitos e obstáculos que maculavam os sistemas políticos filhos da Revolução Francesa.

            O municipalismo constituiu uma das principais componentes teóricas dessas novas doutrinas políticas que surgiam ou ressurgiam, com novos paramentos, com especial incidência em França, transmitindo-se rapidamente aos países ibéricos.

            No caso português, o municipalismo surge como um importante elemento no comentário e na oposição ou aceitação das sucessivas reformas administrativas que, nos anos de 1836 1842, 1870, 1886, 1892, 1896 e 1900, sucessivamente se aplicam no espectro da Monarquia Constitucional. Independentemente do comentário que os autores municipalistas ou centralizadores fizeram a estes documentos legais, que entre si representam diferentes tendências na forma de reordenar administrativamente o território, um dos principais argumentos entre os municipalistas passa pelo passado traumático da transição da Monarquia Tradicional para a Liberal, onde a aplicação de novos paradigmas jurídico-políticos levaram a que o número de concelhos no Portugal Continental e Ilhas se visse reduzido de 796 para 351, assim como à construção de novas realidades no âmbito da administração local, o Distrito e o Governo Civil, que conheceram até aos anos 50 do século XIX uma forte oposição popular.

            Assim, o municipalismo recolhe os apoios de todos os quadrantes ideológicos que se opõem às fundações do regime inaugurado a 1834, com a tónica comum de que este procurou enxertar no país um conjunto de instituições estrangeiras que estão em desacordo com a estrutura psicológica, social, religiosa e moral dos portugueses. Vemos então autores de diferentes partidos e causas, do miguelista Pinho Leal ao “socialista catedrático” Oliveira Martins, da Cartilha Republicana à A Nação, a defenderem uma nova organização territorial que tenha em conta as peculiaridades de um povo, não só do ponto de vista histórico, como religioso, étnico, social, psicológico, etc[11].

Dois municipalismos

            Na sua Teoria do Município, António Sardinha lança o seu testemunho mais completo daquilo que, na sua concepção, é a justificação e a orgânica de uma organização municipalista em Portugal. Continuador de uma perdida tradição medieval, este municipalismo é anti-capitalista, anti-individualista e anti-democrático.

            O municipalismo de Pascoaes encontra-se esparsamente entre a sua obra e assume um carácter igualmente identitário - “o fim da Renascença lusitana é combater influências nefastas ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual”, preconiza um ideário colectivista e comunitário e alimenta-se, também, da memória de uma “democracia medieval”. Assume um papel político mais relevante, uma vez que em A Arte de Ser Português, Pascoaes admite a possibilidade de os municípios elegerem, em órgão colegial, os Presidentes da República.

            Podemos, assim resumir os pontos que unem estas duas teorias municipalistas: apelam à renúncia de modelos estrangeiros, preconizam um modelo ligado ao carácter específico do povo português e vêm a participação activa na política municipal como o espaço privilegiado do cidadão.

O problema histórico

            A visão municipalista comunga de valores partilhados com o corporativismo – mesmo entre os autores liberais que, defendendo um estado descentralizado, não preconizavam um retorno ao modelo social de ordens ou estamental do Antigo Regime e da Idade Média período no qual estas ordens (os parlamentos, as corporações, os estados provinciais, etc.) existindo paralelamente ao absolutismo, reconhecem ao imperador (ou ao rei) uma autoridade divina[12].

            Se no Absolutismo vemos uma progressiva centralização do poder político, esta encontrava-se sempre limitada pela importância do direito consuetudinário e pela própria doutrina jurídica milenar europeia.

            O recrudescimento do poder oligárquico nas municipalidades do mundo mediterrânico, ao longo do século XVIII, quando muito, demonstra a dependência da Coroa perante aqueles que detêm o controlo direto e efetivo dos concelhos.

            Portugal, até ao século XIX, assiste ao bipolarismo Rei/Câmaras, as duas forças políticas do Reino, uma tendo por horizonte um poder absoluto, ainda que conte com insuficientes meios para tal demanda, a outra, ainda que muitas vezes decisiva, fragmentada[13] e ferozmente a-regional. Em Castela, tal como cá, cada município constituía um “universo cerrado”[14].

            Permanecerão nas diferentes unidades territoriais, sem grandes riscos para as grandes monarquias, persistentes valores não-estruturais, como os culturais e os simbólicos. Sem grande risco? A intimidade dos valores fertiliza o terreno para os compromissos e para as convenções sociais – invisíveis, espontâneos, escapam ao controlo da eficácia periférica da coroa. O poder não oficial das picole patrie, pujante na ausência do poder oficial, mantém-se próspero no vazio deixado pelo direito letrado[15].

O Municipalismo e a inevitável estadualidade

A centralização e o triunfo da estadualidade e da sua estrutura burocrática fez-se articulando-se a Instituição, o Aparelho, com o jogo da variabilidade geográfica, económica e sócio-política, do comportamento cultural e religioso, ideológico, patriótico e militar. Lentamente o estado conduz a autonomia local para o exercício de funções instrumentais para a administração estatal[16], triunfando totalmente sobre as resistências dos direitos locais ao longo da Era Revolucionária.

            A municipalização proposta tanto por Pascoaes como por Sardinha são sintomáticas deste triunfo da estadualidade. Se na Idade Média o concelho é um dos jogadores num cenário em que os poderes dançam concêntricamente à volta do rei, já estes municipalismos (saudosista e integralista) se integram, plenamente, nas estruturas do Estado, pretendem envolver-se com o Estado e preencher o Estado, substituindo as estruturas alógenas e hostis ao Bem Comum, como os partidos políticos e as seitas, que o controlam.



[1] PASCOAES, Teixeira de. Verbo Escuro. Rio de Janeiro: Ed. Álvaro Pinto, 1923, pág. 59.

[2] PASCOAES, Teixeira de. Terra Proibida. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, 243.

[3] SARDINHA, António. Pequena Casa Lusitana. Porto: Livraria Civilização. 1937, pág. 36.

[4] SOUSA, Maria José Alves. O nacionalismo em Teixeira de Pascoaes. Porto: FLUP, Dissertação de Mestrado. 1988, pág. 8.

[5] RICOEUR, Paul. Le Mémoire, L’Histoire, L’Oubli. Paris: Edition du Seuil, Septembre 2000, pág. 98

[6] SARDINHA, António. Antologia Poética. Lisboa: Guimarães Editores. 1960, pág. 76.

[7] Idem, pág. 81.

[8] Idem, pág. 88.

[9] PASCOAES, Teixeira de. Terra Proibida. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, pág. 220.

[10] Idem, pág. 244.

[11] CATROGA, Fernando. Natureza e História na Fundamentação do Municipalismo – da Revolução Liberal ao Estado Novo.Estudos em homenagem a Luís António Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pág. 415.

[12] LOUSSE, Émille. La société d’ancien régime. Louvain: Éditions Universitas, 1952, pág. 67.

[13] MAGALHÃES, Joaquim Romero. Concelhos e organização municipal na época moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2011, pág. 124.

[14] VILLAS TINOCO, Siro. La ciudad, las ciudades y la monarquía en la Castilla mediterránea. FERRERO MIRÓ, Remedios (coord.). Autonomía Municipal en el mundo mediterráneo. Ed. Fundación Professor Manuel Broseta y Corts Valencianes, 2002, pág. 251.

[15]  HESPANHA António Manuel, As Vésperas do Leviatã: Instituições e Poder Político. Portugal – séc. XVII, Coimbra: Almedina, 1994, pág. 455.

[16]  D’AGOSTINO, Guido. Tra politica municipale di stati e monarchia e percorsi di adattamento delle cittá: Un tema generale di storia europea tardomedievale e moderna. FERRERO MIRÓ, Remedios (coord.). Autonomía Municipal en el mundo mediterráneo. Ed. Fundación Professor Manuel Broseta y Corts Valencianes, 2002, pág. 116.


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"(...) as leis não têm força contra os hábitos da nação; (...) só dos anos pode esperar-se o verdadeiro remédio, não se perdendo um instante em vigiar pela educação pública; porque, para mudar os costumes e os hábitos de uma nação, é necessário formar em certo modo uma nova geração, e inspirar-lhe novos princípios." - José Acúrsio das Neves