É muito comum julgar documentos antigos como a Doação de Constantino ou as Cortes de Lamego como atrevidas falsificações da Igreja Católica para ludibriar os incautos analfabetos dos tempos obscuros da Idade Média. Vamo-nos debruçar sobre isto:
A Doação de Constantino trata-se de um documento criado em 979. Alegadamente datado de 315, o seu suposto autor fora o imperador Constantino. De acordo com a interpretação oficial da Igreja, a Doação visava dotar o Papa de poder temporal para ordenar os bispos da cristandade romana (ocidental e oriental), e para nomear os imperadores. Ao mesmo tempo a Doação garantia à Igreja uma justificação para possuir propriedades e domínio público sobre terras, especialmente sobre a cidade de Roma, assim como o prestigiante direito ao uso da tiara, uma insígnia imperial que a Santa Sé mantém como um dos seus símbolos centrais.
Foi Lorenzo Valla quem demonstrou de forma metódica de que maneira este documento era uma falsificação grosseira, em obra publicada entre 1439 e 1440. Contudo, as dúvidas sobre a veracidade deste documento datam practicamente desde o momento em que deu à luz, no século X.
Imperadores germânicos duvidaram da sua veracidade, teólogos bizantinos negaram-no veemente. Até ao século XV, data da famosa obra de Lorenzo Valla, já vários bispos haviam lançado as suas dúvidas sobre a Doação.
Então o que justifica o uso da Doação como documento inquestionável de legitimidade política ao longo de 500 anos? A resposta não pode ser somente o prestígio ou o peso político da Santa Sé, uma vez que esse peso e prestígio variaram radicalmente ao longo desses 5 séculos, com pronunciados altos e baixos.
A resposta está na necessidade da legitimidade política.
As realidades plasmadas na Doação de Constantino já existiam antes desta falsificação circular pela mundo. A Igreja Romana já ordenava os bispos do mundo cristão ocidental. A posse política do centro da Península Itálica por parte do bispo de Roma já era abertamente assumida por todas as potências limítrofes, actuando como uma fronteira política, um estado tampão, entre o norte de Itália controlado pelo novo Império Ocidental dos Imperadores Germânicos e um sul que escapava ao controlo do velho Império de Constantinopla e passava aos poucos para as mãos dos normandos.
A Doação de Constantino reforça a pretensão do Ocidente de se assumir como legítimo descendente de Roma, ao deixar nas mãos do Papa o direito de nomear o Imperador do Ocidente, retirando ao Imperador do Oriente a prerrogativa, já de si altamente questionável, de oferecer ou não ao primeiro as insígnias imperiais. Indirectamente a Doação constitui-se como o documento legitimador de uma realidade já existente e altamente necessária para a estabilidade política do Ocidente, oferecendo uma fonte de legitimidade não só ao Sacro-Império, mas também às nascentes entidades políticas europeias, filhas da instabilidade criada pelas invasões muçulmanas, normandas e magiares. Entre o grupo de nações aqui mencionadas está Portugal, que oficialmente só entra para o clube de reinos reconhecidos após a Bula Manifestis Probatum, outorgada em 1179.
Assim, não interessa que a Doação seja uma falsificação, a realidade política e a necessidade de legitimação fizeram dela uma verdade inquestionável que perdura, de certa maneira, até aos dias de hoje. Afinal de contas, os Papas ainda nomeiam os bispos e ainda usam tiara e ainda é um importante passo para qualquer jovem nação independente ser reconhecida pelo Vaticano como tal.
O mesmo se diga sobre as famosas Cortes de Lamego. A primeira menção às Cortes de Lamego surge em 1632, na terceira parte da “Monarchia Lusitana”, da autoria de Frei António Brandão. A Alexandre Herculano é dado o mérito de estabelecer estas cortes como mitologia, mas já antes de Herculano surgiram autores que questionavam a veracidade das cortes, como José Acúrsio das Neves.
No século XVIII autores houve em Portugal que, na senda de desvalorizar o valor político das cortes, cuja reunião estava então em desuso e por todos assumida como desnecessária, cara e ineficaz, lançaram dúvidas sobre a veracidade destas Cortes de Lamego.
Mas o que têm estas Cortes de importante? Segundo António Brandão, nestas Cortes os súbditos portugueses haviam lançado o famoso Grito de Almacave,
“Nós somos livres, o nosso Rei é livre, e as nossas mãos nos libertaram.”
Ou seja, uma espécie de proclamação de soberania por parte da nação portuguesa, outorgando-se a si própria a iniciativa e o direito de proclamar a sua independência. As Cortes haviam sido, supostamente, convocadas por Afonso Henriques para legitimar os seus esforços independentistas.
Também durante estas Cortes se fundamentou os princípios da sucessão ao trono, especialmente a obrigatória nacionalidade portuguesa do monarca.
A obra de Brandão contextualiza-se numa época em que o trono português era detido por uma dinastia espanhola.
Terá Brandão inventado esta história das Cortes de Lamego? Não interessa.
A verdade é que a prática política da monarquia portuguesa reafirma os princípios mitológicos das Cortes, tanto antes como depois da publicação da “Monarchia Lusitana”.
Venceu sempre em Portugal o partido que defendia que o reino devesse ser governado por reis portugueses. Veja-se a crise de 1383-85, em cujas bem reais Cortes de Coimbra obervamos, uma vez mais, o papel fundamental destas para legitimar uma nova dinastia, a de Avis, contra a possibilidade duma dinastia castelhana.
Em 1820 as mitológicas Cortes de Lamego vão ser ser usadas para a legitimação do recém-criado Poder Constituinte, reforçando o papel legislativo do Poder Representativo da Assembleia na Constituição de 1822 e nas seguintes. Em 1828 será usada por alguns fiéis de D. Miguel como forma de legitimar o poder do Rei em convocar cortes e para governar à antiga, de acordo com as leis e a Tradição Portuguesa. Outros, da mesma banda, hão de questionar estes mesmos postulados.
Não interessa que as Cortes não tenham existido - a realidade política e a necessidade de legitimação do poder fizeram das Cortes uma realidade inquestionável. Herculano colocou em causa a forma, mas o conteúdo é inolvidável.
Quer isto dizer que os nossos antepassados viviam oprimidos por ficções políticas com origem em falsificações?
Tanto como nós. Nós também vivemos em regimes fundamentados por princípios não só falsos, mas antropologicamente errados.
A realidade demo-liberal sustenta-se nas doutrinas dos contratos sociais de autores como Locke, ou Montesquieu ou Rousseau, para sustentar a legitimidade do poder político democrático.
Qualquer história da Humanidade, qualquer manual básico de antropologia, comprova facilmente que a sociedade humana não teve início num contrato social.
A estratificação social e hierárquica das primeiras civilizações humanas deu-se de forma orgânica, assumindo várias formas, evoluções, caminhos interrompidos e experiências falhadas.
A ficção política do nosso tempo é a de que o poder político é legitimado pela decisão actualizada das gerações presentes - a democracia, uma espécie de contrato social permanentemente renovado. Ou seja, a nossa falsificação é a de que o poder pode ser exercido legitimamente após um universal concurso de popularidade e que essa legitimidade confere ao vencedor desse concurso o poder para mudar tudo ou quase tudo.
Os nossos antepassados acreditavam que a legitimade política estava amplamente limitada pela Tradição, pela Antiguidade, assim como a Razão e a Justiça das pretensões políticas, que podiam nascer de práticas continuadas ou assumidas pela comunidade como úteis e intemporais, ou seja, que servissem às gerações futuras e honrassem os desígnios das gerações passadas. Para nós conta somente a decisão da geração presente, como se a História e a Política se esgotassem apenas nos que estão presentemente vivos.
Quem vive, então, na maior mentira?