terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Recordações da Hungria (IV)

Durante o ano lectivo passado pude ter a possibilidade de realizar um ano de Licenciatura na Academia Ferenc Liszt em Budapest, Hungria. E aquilo que ainda hoje me espanta deveras prende-se com a quantidade de concertos que aconteceram no Grande Auditório, entre Setembro e meados de Dezembro.

O facto de haver concertos todos os dias e muitas das vezes, duas vezes no mesmo dia, é revelador de uma grande tradição de divulgação de muito material existente na arte musical erudita.

Todas as formas musicais eram apresentadas; os agrupamentos sucediam-se; as interpretações a solo também. Formações sinfónicas e filarmónicas enchiam os camarins, os bastidores, as salas de ensaio, algumas já demasiado velhas para albergarem tantos músicos. Desta forma habituei-me a passar os fins de tarde a ver um concerto na minha escola, numa sala com boa acústica (não em todos os lugares), finalizando um dia repleto de estudo e de aulas com programas musicais de qualidade.

É óbvio que com tanta quantidade, a qualidade não seria a mesma em todos os concertos e audições. O mais engraçado era constatar que as Orquestras húngaras de maior orçamento eram as que mais defraudavam as expectativas, com piores maestros que os da Universidade. Tanto se podia ouvir uma esplenderosas Soprano Cantar numa Sinfonia de Mahler, com um registo final etéreo e delicioso, como no dia seguinte não conseguir aguentar 15 minutos de uma Missa de Johann Sebastian Bach, pois a orquestra está extremamente lenta e desafinada. Havia, pelo menos, meia casa, como se dum estádio de futebol de um grande se tratasse; muita gente passava lá a vida nos mesmos lugares, sendo que os das primeiras 7 filas!!! tinham o nome gravado nas cadeiras de quem os tinhas comprado pela primeira vez, desde a fundação em 1875.



O "galinheiro" (lugares para estudantes) está sempre cheio. Sendo gratuitos, havia imensa procura e "tácticas/estratagemas" para driblar a concorrência. Quem melhor se preparava eram os asiáticos. Sempre em grupo, nunca se via, em toda a cidade!!! um estudante asiático sozinho. Era impressionante. Ocupavam desde muito, mas muito cedo os lugares. Mas valia a pena o esforço, pois comparado, por exemplo, com o do Coliseu do Porto, este "galinheiro" era de lugares VIP's. Cadeiras almofadas, boas acústica, boa visão e de borla. Também se podiam assistir aos ensaios neste lugar.

Houve o caso do pianista Piotr Anderszewski que, por doença, faltou. Quem o substituiu, a menos de 2 horas do concerto, foi um Professor da Academia, Jano Jendo, que apresentou um programa repleto de peças de quase todas as épocas musicais. Desde o clássico até música húngara contemporãnea, foi mais de hora e meia de música de boa qualidade, a dar dois extras ao seu público.



Esta quantidade exorbitante de concertos é assinalável conquanto que, ao mesmo tempo e em certos dias, havia mais de 10!! concertos, só de música erudita e só em alguns distritos/quarteirões de Budapest. Juntando a Opera, tínhamos uma variedade inesgotável, com preços altamente competitivos, transportes "à porta" para quase todas as salas. Fosse estudante, funcionário público, reformado, grupos de escolas com Professores, havia sempre um desconto para alguém.



Dir-me-á o leitor: "Pois, mas estamos a falar da Capital do país". Sim, é impossível de comparar com o Porto. Mas mesmo com Lisboa, que faltará acrescentar à riquíssima tradição que estas duas cidades portuguesas têm na divulgação de música portuguesa erudita? Talvez se não houvesse tantas "capelinhas" e gestão fraudulenta de dinheiros públicos, se respeitássemos mais o património imobiliário edificado em nome da música, em vez de deitarmos abaixo porque está velho, talvez houvesse mais variedade.



Porque concertos em Portugal não faltam, basta ver as agendas de imensas cidade.



Falta sim a conjugação entre elas. Para não termos quase tudo na mesma altura e depois um deserto, em que um instrumentista solista ou um grupo de música de câmara tocam numa sala uma vez por mês.

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"(...) as leis não têm força contra os hábitos da nação; (...) só dos anos pode esperar-se o verdadeiro remédio, não se perdendo um instante em vigiar pela educação pública; porque, para mudar os costumes e os hábitos de uma nação, é necessário formar em certo modo uma nova geração, e inspirar-lhe novos princípios." - José Acúrsio das Neves