domingo, 8 de novembro de 2020

O Terrorismo e a Cobardia

 

1. O Terrorismo

Esta semana lembrei-me da história do aristocrata polaco que descrevia aos seus amigos o saque que as tropas soviéticas haviam feito ao seu solar. A biblioteca queimada, obras de arte destruídas, tudo em nome do vandalismo da tropa fandanga. Tudo isso o nobre polaco entendia, pois também tinha sido soldado e esses desmandos não lhe eram estranhos.

Aquilo que o chocou e humilhou até às lágrimas foi o terror infligido pela pura maldade da ocupação soviética: uma estátua da Virgem Maria decapitada e com as mãos decepadas.

A destruição do sagrado pela tropa de choque do laicismo é agora feita nas escolas pelos autómatas a que chamam, para gáudio dos fingimentos, de “professores”, repetida pelos alunos nas ruas das cidades e no saque das Igrejas e na destruição dos lugares sagrados.

Samuel Patty, o professor decapitado em França por um muçulmano salafita, era um desses autómatas. Tinha mostrado na sua sala de aula os tais cartoons desinspirados que um cartoonista dinamarquês fez sobre o profeta Maomé, o profeta do Islão. Assim como para um católico a Virgem Maria é a imagem da pureza e da generosidade, a Mãe Divina de toda uma comunidade religiosa, também o Profeta é o elo de nobreza e virtude que une os pilares do Corão e, por conseguinte, a fibra moral das famílias e das comunidades islâmicas.

O laicismo que cortou os braços à virgem na Polónia foi o mesmo que desonrou o Profeta na Dinamarca. É o laicismo destructivo que pretende demolir tudo o que é sagrado e reduzir os Homens a um ideal e a riqueza do mosaico das Tradições pelo betão ateu. A morte de Samuel Patty é a morte do ideal iluminista, Ideal esse claramente insuficiente para os Povos que mantêm como seu direito inalienável a religião dos seus antepassados.

Esse laicismo radical cumpre-se na Revolução Universal, na imposição dos seus valores a todos os povos da Terra.

A sua morte é também a morte do multiculturalismo, a utopia que propõe criar, sobre os ombros de diferentes culturas, uma “super-cultura” cujos ideias sejam seguidos por todos. Uma “super-cultura” que mais não é do que a Boa Nova do Laicismo, propagada a todos os povos, uma espécie de Culto Imperial dos tempos modernos. Como dantes Roma permitia a liberdade de culto, desde que as religiões locais se vergassem ao culto dos imperadores romanos, também o laicismo permite a “liberdade religiosa”, desde que os valores laicos se lhe sobreponham.

Ironicamente, o terrorismo islâmico é um subproduto dessa cultura nascida a Ocidente. O Islão foi importado para a Europa em grandes quantidades com o fim de afogar o cristianismo, sob o disfarce de um diálogo interreligioso que pretendia confundir as diferenças entre cada religião e a sua fusão numa teologia de ecumenismo oco, numa religiosidade subserviente aos valores desse mesmo laicismo. Agora insurge-se o islamismo salafista na reacção mais radical aos “valores ocidentais” e escolhe como alvo não só o cristianismo mas também, irónicamente, o laicismo que ainda o protege.

2. A Cobardia

Que tipo de homem é que avança para matar outro, com uma faca na mão, quando este se encontra desarmado? Que honra se terá feito ao Profeta com a morte um pobre professor assustado? Que honra terá o Profeta ou o seu Deus recebido com a decapitação de uma senhora idosa numa Igreja em França? E do esfaqueamento de outras pessoas? E de tantas outras violências contra pessoas indefesas?

Só nos prova que o Islão destes “radicais” é um Islão de cobardes. Que um homem tenha a morte no olhar, compreendo. Agora que levante a mãe em fúria para quem não se sabe ou pode proteger? Isto é pior que terrorismo, é cobardia.

Que homem pode destruir um crucifixo, ou decapitar uma estátua da Virgem, ou desgraçar para sempre uma imagem com a Senhora segurando o Menino nos braços, a forma mais pura da ternura familiar? Que homem queima uma Igreja, onde se baptizam crianças, onde mães e pais acompanham os seus bebés e apresentam-nos perante Deus e os seus? Onde as famílias nascem no casamento e onde nos despedimos dos que partem nos funerais? Isto é pior que terrorismo, é cobardia.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Fratelli Tutti

 A encíclica papal Fratelli Tutti constitui um dos mais interessantes exercícios de doutrina social da Igreja e um dos documentos mais corajosos da Santa Sé.

A menção às consequências negativas da exploração capitalista, aos sofismas populistas que hoje em dia passam por "alternativas políticas", não são novidade no discurso do papa e são advertências que os cristãos devem ouvir e receber.

O papa recorda-nos das nossas velhas tradições jurídicas e afasta-nos para longe do individualismo liberal, que considera a propriedade privada como base da nossa civilização, trazendo-nos de volta aos princípios basilares herdados de Roma e Jerusalém:


"Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada».[95] O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»."


O documento leva-nos a reflexões importantes, como a que cada país deve chegar ao seu modelo de desenvolvimento e que não deve haver apenas um modelo, o modelo anglo-saxónico de capitalismo liberal ou o modelo germânico de socialismo de estado, a prevalecer:


"Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como modelos culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos valores da sua própria cultura."


No capítulo da defesa dos refugiados e dos desprotegidos, recordou-nos o Papa do dever de cada um no auxílio ao Próximo e no debelar dos grandes sofrimentos causados pelas guerras e pelas fomes, mas o Papa foi mais longe que qualquer comunicado oficial ao recordar o mal do tráfico humano perpetrado por muitas das ONG que se dizem humanitárias:


"Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis»."


Não é todos os dias que vemos reconhecida, em público, a existência destas organizações envolvidas no tráfico de migrantes.

Outro ponto interessantíssimo e vanguardista é o reconhecimento da presença dos lobbies de Silicon Valley no controlo da informação:


"Não se pode ignorar que «há interesses económicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático."


E se muitos acreditam que o Papa promove uma agenda de autodestruição, deixo aqui outras citações:


"Não se trata daquele falso universalismo de quem precisa de viajar constantemente, porque não suporta nem ama o próprio povo. Quem olha para a sua gente com desprezo, estabelece na própria sociedade categorias de primeira e segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos."

"Também não estou a propor um universalismo autoritário e abstrato, ditado ou planificado por alguns e apresentado como um presumível ideal para homogeneizar, dominar e saquear. "


Muitas outras coisas podiam ser ditas deste documento, um documento que combate as mentiras do liberalismo, do progresso imparável, do domínio da tecnologia sobre o homem e assume as verdades cristãs da Piedade e do Amor sobre todas as coisas. 

Para mim, que o li, aconselho aos que não o leram, que o façam com olhos de ler, não com olhos de criticar. É difícil, tal a poluição literária que nos invade, mas é um exercício possível a mentes honestas.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Municipalismo entre Teixeira de Pascoaes e António Sardinha: Mitologias e Identidades

A palavra cantada – Pátria e Memória na poesia de Pascoais e Sardinha

            Como alguns dos leitores mais velhos devem recordar-se, a lareira ocupou em tempos um lugar proeminente na composição da sala e no quotidiano da família portuguesa. As lareiras desempenhavam a função essencial de aquecer casas, corpos e corações, facilitando a criação de um lar e comida quentes. Era também à volta da lareira que muitas famílias se reuniam para, especialmente nos dias mais frios do ano, conviver, relatar as façanhas do dia-a-dia, relembrar as velhas glórias, aconselhar os mais novos e acomodar os mais velhos. Hoje em dia, perante as soluções disponíveis que nos protegem do frio, do escuro e até do tédio, a lareira vê-se encostada a um canto da sala, quando existe sequer, muitas vezes para efeito puramente estético, substituída na sua essência pela alienação egoísta da televisão.

            Espaço místico e simbólico, a lareira é a representação do lar doméstico, local das primeiras cogitações, das primeiras experiências, dos momentos fundadores de homens e povos. É Teixeira de Pascoaes quem a define:

É o ambiente da Intimidade profunda, do divino Alheamento, em que a minha alma, cantando baixinho, parece adormecer alguém que vive afflicto. Em ti, ó velha lareira, suja de cinza e fumo, pelos montes de inverno, eu sinto que vivo, e a sombra que projecto ao clarão do teu fogo, sorri, voltado para Deus...[1]

As lareiras das casas antigas assistem ao passar das gerações unidas à volta do fogo, unindo as gerações do presente ao passado, marcando a própria geografia e, assim, o próprio Poeta:

O fumo das lareiras, no ar, se eleva

E toma negro vulto a fria terra.

E vejo-a desgastar a minha imagem,

E faleço nas sombras da paisagem.[2]

Sardinha e Pascoaes

Qual é a validade de, nestas primeiras décadas do século XXI, sentar Pascoaes e Sardinha à mesma lareira, conduzindo o seu diálogo num tom de amistosa concordância, como se se tratassem de dois anciãos a contar histórias aos mais novos?

Apesar das diferenças fundamentais entre o pensamento do fundador do Integralismo Lusitano e o fundador da Renascença Portuguesa, podemos notar nas suas obras e nos seus artigos n’A Nação e n’A Águia, respectivamente os órgãos de comunicação oficiais dos movimentos que encabeçavam, assim como noutros jornais e revistas, vários pontos em comum que uniam os seus nacionalismos. O folclore, a paisagem e a identidade local estão entre esses ingredientes que ambos autores propunham como essenciais para reabilitar uma pátria que acreditavam estar em desesperada necessidade de renascer.

Este renascimento impunha um retorno às origens, no sentido de voltar ao trabalho da terra, na memória dos primeiros povoadores da era afonsina

Voltemos à raiz! E ao chão lavrado

Sobre o que houver de Portugal passado

Que Portugal de novo se edifique.[3]

O exercício implica não um retrocesso civilizacional, mas a redescoberta de um caminho ou experiência de pendor místico e até religioso[4]

Parte! Regressa, enfim, ao Paraíso!

Culltivarás aquela terra antiga

Com as tuas próprias mãos, restituindo-a

Ao primitivo e mágico esplendor.

A terra, repleta de significado e de personalidade, ensina ao Poeta os segredos da Identidade e da Memória, memória essa que não está somente confinada a uma religião ou a um grupo selecto, mas a um todo que define a comunidade.

Paul Ricoeur definiu três fragilidades da identidade: a fragilidade face ao tempo, de onde surge a necessidade do recurso à memória ou ao esquecimento, a fragilidade face ao outro, de onde surge o contacto hostil e a fragilidade da herança da fundação violenta, própria, por exemplo, das comunidades nascidas da guerra, evento que constitui para uns glória e, para outros, humilhação[5]. Sardinha, no poema Évora-Cidade, procurou um compromisso com o passado da cidade alentejana, para além das suas raízes cristãs e muçulmanas, num canto que remetesse para a origem e para a energia continuadora da Raça e para a promessa de um futuro salvífico e divino

Sobre o Crescente e a Cruz, atrás do arado

A Raça canta sempre e ainda espera.

Cheia de fé, semeia. E o grão sagrado

Muda-lhe a esperança em pão abençoado

Por cada primavera.[6]

 

Sobe da estepe, quando a relha a corta,

Não sei que incerta voz, que enlevo esparso.

É cinza heróica, são ossadas nuas,

Toda a grandeza morta,

Rimando a intrepidez do velho sangue

Com o furor fecundo das charruas.

(...)

Deus quis-te bem, ó Évora-cidade!

Serás na eternidade

A salvadora mística do Mundo

A mística Jerusalém terrestre![7]

Vale a pena ter em conta este aspecto de mestiçagem, mesmo num autor que não se coibiu, em outros escritos, de criticar a mistura entre raças. Em Sardinha, a palavra Raça tem muito de étnico, mas nem por isso o Amor, naquilo que o cristianismo lhe emprestou de universal, se deixa de manifestar na sua poesia

De manhãzinha

Irão casar moiras e cristãos.[8]

A Terra, a Paisagem. Elementos de um todo superior, de uma pátria que está para além dos símbolos mais óbvios, mais toscos, dos regimes políticos e das religiões estabelecidas. Elementos que estão vivos – não servem apenas para ser cantados, brandidos como um escudo. São forças que falam, mas que também ouvem.

Árvores da minha aldeia,

Eu quero-vos contar a minha História,

Quando vem do Marão a lua cheia

Do fio luz marmórea.[9]

 

Há certos sítios da alma consagrados

E da tua lembrança alumiados

É ali que vou rezar as minhas preces.[10]

 

            O crescente mal-estar que percorre a europa, ao longo da fase final do século XIX, numa onda de descontentamento face às instituições liberais que se popularizaram um pouco por todo o velho continente desde o ínicio de século, levou à procura de novas soluções para ultrapassar os defeitos e obstáculos que maculavam os sistemas políticos filhos da Revolução Francesa.

            O municipalismo constituiu uma das principais componentes teóricas dessas novas doutrinas políticas que surgiam ou ressurgiam, com novos paramentos, com especial incidência em França, transmitindo-se rapidamente aos países ibéricos.

            No caso português, o municipalismo surge como um importante elemento no comentário e na oposição ou aceitação das sucessivas reformas administrativas que, nos anos de 1836 1842, 1870, 1886, 1892, 1896 e 1900, sucessivamente se aplicam no espectro da Monarquia Constitucional. Independentemente do comentário que os autores municipalistas ou centralizadores fizeram a estes documentos legais, que entre si representam diferentes tendências na forma de reordenar administrativamente o território, um dos principais argumentos entre os municipalistas passa pelo passado traumático da transição da Monarquia Tradicional para a Liberal, onde a aplicação de novos paradigmas jurídico-políticos levaram a que o número de concelhos no Portugal Continental e Ilhas se visse reduzido de 796 para 351, assim como à construção de novas realidades no âmbito da administração local, o Distrito e o Governo Civil, que conheceram até aos anos 50 do século XIX uma forte oposição popular.

            Assim, o municipalismo recolhe os apoios de todos os quadrantes ideológicos que se opõem às fundações do regime inaugurado a 1834, com a tónica comum de que este procurou enxertar no país um conjunto de instituições estrangeiras que estão em desacordo com a estrutura psicológica, social, religiosa e moral dos portugueses. Vemos então autores de diferentes partidos e causas, do miguelista Pinho Leal ao “socialista catedrático” Oliveira Martins, da Cartilha Republicana à A Nação, a defenderem uma nova organização territorial que tenha em conta as peculiaridades de um povo, não só do ponto de vista histórico, como religioso, étnico, social, psicológico, etc[11].

Dois municipalismos

            Na sua Teoria do Município, António Sardinha lança o seu testemunho mais completo daquilo que, na sua concepção, é a justificação e a orgânica de uma organização municipalista em Portugal. Continuador de uma perdida tradição medieval, este municipalismo é anti-capitalista, anti-individualista e anti-democrático.

            O municipalismo de Pascoaes encontra-se esparsamente entre a sua obra e assume um carácter igualmente identitário - “o fim da Renascença lusitana é combater influências nefastas ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual”, preconiza um ideário colectivista e comunitário e alimenta-se, também, da memória de uma “democracia medieval”. Assume um papel político mais relevante, uma vez que em A Arte de Ser Português, Pascoaes admite a possibilidade de os municípios elegerem, em órgão colegial, os Presidentes da República.

            Podemos, assim resumir os pontos que unem estas duas teorias municipalistas: apelam à renúncia de modelos estrangeiros, preconizam um modelo ligado ao carácter específico do povo português e vêm a participação activa na política municipal como o espaço privilegiado do cidadão.

O problema histórico

            A visão municipalista comunga de valores partilhados com o corporativismo – mesmo entre os autores liberais que, defendendo um estado descentralizado, não preconizavam um retorno ao modelo social de ordens ou estamental do Antigo Regime e da Idade Média período no qual estas ordens (os parlamentos, as corporações, os estados provinciais, etc.) existindo paralelamente ao absolutismo, reconhecem ao imperador (ou ao rei) uma autoridade divina[12].

            Se no Absolutismo vemos uma progressiva centralização do poder político, esta encontrava-se sempre limitada pela importância do direito consuetudinário e pela própria doutrina jurídica milenar europeia.

            O recrudescimento do poder oligárquico nas municipalidades do mundo mediterrânico, ao longo do século XVIII, quando muito, demonstra a dependência da Coroa perante aqueles que detêm o controlo direto e efetivo dos concelhos.

            Portugal, até ao século XIX, assiste ao bipolarismo Rei/Câmaras, as duas forças políticas do Reino, uma tendo por horizonte um poder absoluto, ainda que conte com insuficientes meios para tal demanda, a outra, ainda que muitas vezes decisiva, fragmentada[13] e ferozmente a-regional. Em Castela, tal como cá, cada município constituía um “universo cerrado”[14].

            Permanecerão nas diferentes unidades territoriais, sem grandes riscos para as grandes monarquias, persistentes valores não-estruturais, como os culturais e os simbólicos. Sem grande risco? A intimidade dos valores fertiliza o terreno para os compromissos e para as convenções sociais – invisíveis, espontâneos, escapam ao controlo da eficácia periférica da coroa. O poder não oficial das picole patrie, pujante na ausência do poder oficial, mantém-se próspero no vazio deixado pelo direito letrado[15].

O Municipalismo e a inevitável estadualidade

A centralização e o triunfo da estadualidade e da sua estrutura burocrática fez-se articulando-se a Instituição, o Aparelho, com o jogo da variabilidade geográfica, económica e sócio-política, do comportamento cultural e religioso, ideológico, patriótico e militar. Lentamente o estado conduz a autonomia local para o exercício de funções instrumentais para a administração estatal[16], triunfando totalmente sobre as resistências dos direitos locais ao longo da Era Revolucionária.

            A municipalização proposta tanto por Pascoaes como por Sardinha são sintomáticas deste triunfo da estadualidade. Se na Idade Média o concelho é um dos jogadores num cenário em que os poderes dançam concêntricamente à volta do rei, já estes municipalismos (saudosista e integralista) se integram, plenamente, nas estruturas do Estado, pretendem envolver-se com o Estado e preencher o Estado, substituindo as estruturas alógenas e hostis ao Bem Comum, como os partidos políticos e as seitas, que o controlam.



[1] PASCOAES, Teixeira de. Verbo Escuro. Rio de Janeiro: Ed. Álvaro Pinto, 1923, pág. 59.

[2] PASCOAES, Teixeira de. Terra Proibida. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, 243.

[3] SARDINHA, António. Pequena Casa Lusitana. Porto: Livraria Civilização. 1937, pág. 36.

[4] SOUSA, Maria José Alves. O nacionalismo em Teixeira de Pascoaes. Porto: FLUP, Dissertação de Mestrado. 1988, pág. 8.

[5] RICOEUR, Paul. Le Mémoire, L’Histoire, L’Oubli. Paris: Edition du Seuil, Septembre 2000, pág. 98

[6] SARDINHA, António. Antologia Poética. Lisboa: Guimarães Editores. 1960, pág. 76.

[7] Idem, pág. 81.

[8] Idem, pág. 88.

[9] PASCOAES, Teixeira de. Terra Proibida. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, pág. 220.

[10] Idem, pág. 244.

[11] CATROGA, Fernando. Natureza e História na Fundamentação do Municipalismo – da Revolução Liberal ao Estado Novo.Estudos em homenagem a Luís António Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pág. 415.

[12] LOUSSE, Émille. La société d’ancien régime. Louvain: Éditions Universitas, 1952, pág. 67.

[13] MAGALHÃES, Joaquim Romero. Concelhos e organização municipal na época moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2011, pág. 124.

[14] VILLAS TINOCO, Siro. La ciudad, las ciudades y la monarquía en la Castilla mediterránea. FERRERO MIRÓ, Remedios (coord.). Autonomía Municipal en el mundo mediterráneo. Ed. Fundación Professor Manuel Broseta y Corts Valencianes, 2002, pág. 251.

[15]  HESPANHA António Manuel, As Vésperas do Leviatã: Instituições e Poder Político. Portugal – séc. XVII, Coimbra: Almedina, 1994, pág. 455.

[16]  D’AGOSTINO, Guido. Tra politica municipale di stati e monarchia e percorsi di adattamento delle cittá: Un tema generale di storia europea tardomedievale e moderna. FERRERO MIRÓ, Remedios (coord.). Autonomía Municipal en el mundo mediterráneo. Ed. Fundación Professor Manuel Broseta y Corts Valencianes, 2002, pág. 116.


segunda-feira, 11 de maio de 2020

A maior inimiga

24 de Julho de 1759. Kaunitz, diplomata da Imperatriz Maria Teresa d'Áustria, escrevia ao general Daun sobre a necessidade de conseguir mais vitórias contra uma enfraquecida Prússia, humilhada e sangrada em Hochkirch. Dizia Kaunitz, num dos mais importantes documentos do século XVIII, que era vital assegurar uma paz que não custasse a manutenção de um grande exército, uma paz que permitisse aligeirar o fardo dos povos, ao invés de o aumentar com mais impostos e mais contribuições para o esforço de guerra. Este tipo de humanismo, comum na corte de Maria Teresa, era raro na de Frederico da Prússia, o seu maior inimigo.

De facto, Kaunitz via na sociedade militarista da Prússia a maior inimiga da civilização europeia. Viena era a capital de um Império de arte, música e beleza - Berlim era o quartel general de uma dinastia de reis sargento, o centro nevrálgico de uma raça que sonhava em pisar com a sua bota de cavalaria todos os povos da Alemanha e, um dia, todos os povos da Europa.

A arrogância prussiana foi domada depois de Kunesdorf e a Europa salvou-se durante quase 100 anos.
Kaunitz sabia que em breve a Áustria, e depois todos os reinos da Europa, teriam de adoptar uma forma de governo "à prussiana" para sobreviver aos ataques e às pretensões de uma nação reduzida a viveiro de soldados. Em breve, caso a Prússia não fosse controlada, toda a Europa se veria reduzida à infâmia, à "carga insuportável" de fazer dos seus cidadãos carne para canhão. Ao estadista imperial preocupava-lhe algo mais do que os destinos da Áustria - preocupava-lhe "os destinos da espécie humana".

A loucura arrebatadora de Frederico da Prússia no campo de batalha, os erros cometidos em sucessivas derrotas militares e diplomáticas, valeram aos seus rivais austríacos a oportunidade de silenciar este foco de perigo para a paz europeia. Contudo, as sementes do mal já estavam semeadas.
O absolutismo prussiano instituiu as bases do recrutamento militar universal e obrigatório, mas foram os revolucionários jacobinos franceses que terminaram os moldes desta nova forma de guerra, a Guerra Total, a Guerra Democrática, envolvendo todas as classes sociais, conhecendo apenas a aniquilação total do inimigo.

100 anos após a batalha de Kunesdorf, a Prússia humilhava a França, fazia coroar o seu império em Versalhes e arrancava-lhe uma boa parte do seu território. A botifarra prussiana pensava ainda à moda violenta e brutal dos reis Fredericos. O único elemento aristocrático deste imenso estado bélico-burocrático era a Nobreza terratenente dos Junckers, os oficiais dos exércitos de Berlim. No resto, a Prússia já demonstrava em si o gérmen de socialismo igualitário que viria a brotar nas décadas seguintes.

Depois que Bismarck plantasse as sementes para o suicídio da Europa de 1914-1918, foi a vez de outro admirador confesso de Frederico da Prússia, como bem recordou Dominique Venner, de mergulhar a Europa em mais uma guerra fratricida, em mais um conflito de "tudo ou nada": Adolf Hitler. Este, por ironia cruel da história, austríaco.

No final, repetiu-se a história: em Valmy (1792) a Revolução Francesa derrotava a Prússia com um exército compulsivamente recrutado, ou seja, utilizando os métodos prussianos com ainda mais crueldade e vigor.
Em 1945, os aliados derrotavam uma Alemanha no jogo que esta havia inventado - o da Guerra Total, o da submissão total dos povos invadidos, o da supressão dos fracos frente aos fortes, lançando no território alemão um terror de pilhagem e violação que só competia com aquela que os próprios alemães criaram na Ucrânia e na Rússia, quando tentaram fazer do Leste da Europa uma terreno limpo, um deserto a ser habitado por uma nova raça de "camponeses soldado".

O feitiço virava-se contra o feiticeiro.

Contudo, em 1759  naquele dia de Julho, tudo isto parecia muito longínquo e a salvação da Europa parecia ainda muito possível, quando Kaunitz escrevia a Daun sobre como haveriam de salvar a espécie humana.



Na foto: Wenzel Anton Reichsfürst von Kaunitz-Rietberg, Príncipe de Kaunitz. Quadro de Jean-Étienne Liotard (1762)

quinta-feira, 9 de abril de 2020

He must seek his life in a spirit of furious indifference to it; he must desire life like water and yet drink death like wine.

«"He that will lose his life, the same shall save it," is not a piece of mysticism for saints and heroes.
(...)
A soldier surrounded by enemies, if he is to cut his way out, needs to combine a strong desire for living with a strange carelessness about dying. He must not merely cling to life, for then he will be a coward, and will not escape. He must not merely wait for death, for then he will be a suicide, and will not escape.

He must seek his life in a spirit of furious indifference to it; he must desire life like water and yet drink death like wine.

No philosopher, I fancy, has ever expressed this romantic riddle with adequate lucidity, and I certainly have not done so. But Christianity has done more: it has marked the limits of it in the awful graves of the suicide and the hero, showing the distance between him who dies for the sake of living and him who dies for the sake of dying. And it has held up ever since above the European lances the banner of the mystery of chivalry: the Christian courage, which is a disdain of death; not the Chinese courage, which is a disdain of life.»

G.K. Chesterton, "Orthodoxy"

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"(...) as leis não têm força contra os hábitos da nação; (...) só dos anos pode esperar-se o verdadeiro remédio, não se perdendo um instante em vigiar pela educação pública; porque, para mudar os costumes e os hábitos de uma nação, é necessário formar em certo modo uma nova geração, e inspirar-lhe novos princípios." - José Acúrsio das Neves