segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Municipalismo entre Teixeira de Pascoaes e António Sardinha: Mitologias e Identidades

A palavra cantada – Pátria e Memória na poesia de Pascoais e Sardinha

            Como alguns dos leitores mais velhos devem recordar-se, a lareira ocupou em tempos um lugar proeminente na composição da sala e no quotidiano da família portuguesa. As lareiras desempenhavam a função essencial de aquecer casas, corpos e corações, facilitando a criação de um lar e comida quentes. Era também à volta da lareira que muitas famílias se reuniam para, especialmente nos dias mais frios do ano, conviver, relatar as façanhas do dia-a-dia, relembrar as velhas glórias, aconselhar os mais novos e acomodar os mais velhos. Hoje em dia, perante as soluções disponíveis que nos protegem do frio, do escuro e até do tédio, a lareira vê-se encostada a um canto da sala, quando existe sequer, muitas vezes para efeito puramente estético, substituída na sua essência pela alienação egoísta da televisão.

            Espaço místico e simbólico, a lareira é a representação do lar doméstico, local das primeiras cogitações, das primeiras experiências, dos momentos fundadores de homens e povos. É Teixeira de Pascoaes quem a define:

É o ambiente da Intimidade profunda, do divino Alheamento, em que a minha alma, cantando baixinho, parece adormecer alguém que vive afflicto. Em ti, ó velha lareira, suja de cinza e fumo, pelos montes de inverno, eu sinto que vivo, e a sombra que projecto ao clarão do teu fogo, sorri, voltado para Deus...[1]

As lareiras das casas antigas assistem ao passar das gerações unidas à volta do fogo, unindo as gerações do presente ao passado, marcando a própria geografia e, assim, o próprio Poeta:

O fumo das lareiras, no ar, se eleva

E toma negro vulto a fria terra.

E vejo-a desgastar a minha imagem,

E faleço nas sombras da paisagem.[2]

Sardinha e Pascoaes

Qual é a validade de, nestas primeiras décadas do século XXI, sentar Pascoaes e Sardinha à mesma lareira, conduzindo o seu diálogo num tom de amistosa concordância, como se se tratassem de dois anciãos a contar histórias aos mais novos?

Apesar das diferenças fundamentais entre o pensamento do fundador do Integralismo Lusitano e o fundador da Renascença Portuguesa, podemos notar nas suas obras e nos seus artigos n’A Nação e n’A Águia, respectivamente os órgãos de comunicação oficiais dos movimentos que encabeçavam, assim como noutros jornais e revistas, vários pontos em comum que uniam os seus nacionalismos. O folclore, a paisagem e a identidade local estão entre esses ingredientes que ambos autores propunham como essenciais para reabilitar uma pátria que acreditavam estar em desesperada necessidade de renascer.

Este renascimento impunha um retorno às origens, no sentido de voltar ao trabalho da terra, na memória dos primeiros povoadores da era afonsina

Voltemos à raiz! E ao chão lavrado

Sobre o que houver de Portugal passado

Que Portugal de novo se edifique.[3]

O exercício implica não um retrocesso civilizacional, mas a redescoberta de um caminho ou experiência de pendor místico e até religioso[4]

Parte! Regressa, enfim, ao Paraíso!

Culltivarás aquela terra antiga

Com as tuas próprias mãos, restituindo-a

Ao primitivo e mágico esplendor.

A terra, repleta de significado e de personalidade, ensina ao Poeta os segredos da Identidade e da Memória, memória essa que não está somente confinada a uma religião ou a um grupo selecto, mas a um todo que define a comunidade.

Paul Ricoeur definiu três fragilidades da identidade: a fragilidade face ao tempo, de onde surge a necessidade do recurso à memória ou ao esquecimento, a fragilidade face ao outro, de onde surge o contacto hostil e a fragilidade da herança da fundação violenta, própria, por exemplo, das comunidades nascidas da guerra, evento que constitui para uns glória e, para outros, humilhação[5]. Sardinha, no poema Évora-Cidade, procurou um compromisso com o passado da cidade alentejana, para além das suas raízes cristãs e muçulmanas, num canto que remetesse para a origem e para a energia continuadora da Raça e para a promessa de um futuro salvífico e divino

Sobre o Crescente e a Cruz, atrás do arado

A Raça canta sempre e ainda espera.

Cheia de fé, semeia. E o grão sagrado

Muda-lhe a esperança em pão abençoado

Por cada primavera.[6]

 

Sobe da estepe, quando a relha a corta,

Não sei que incerta voz, que enlevo esparso.

É cinza heróica, são ossadas nuas,

Toda a grandeza morta,

Rimando a intrepidez do velho sangue

Com o furor fecundo das charruas.

(...)

Deus quis-te bem, ó Évora-cidade!

Serás na eternidade

A salvadora mística do Mundo

A mística Jerusalém terrestre![7]

Vale a pena ter em conta este aspecto de mestiçagem, mesmo num autor que não se coibiu, em outros escritos, de criticar a mistura entre raças. Em Sardinha, a palavra Raça tem muito de étnico, mas nem por isso o Amor, naquilo que o cristianismo lhe emprestou de universal, se deixa de manifestar na sua poesia

De manhãzinha

Irão casar moiras e cristãos.[8]

A Terra, a Paisagem. Elementos de um todo superior, de uma pátria que está para além dos símbolos mais óbvios, mais toscos, dos regimes políticos e das religiões estabelecidas. Elementos que estão vivos – não servem apenas para ser cantados, brandidos como um escudo. São forças que falam, mas que também ouvem.

Árvores da minha aldeia,

Eu quero-vos contar a minha História,

Quando vem do Marão a lua cheia

Do fio luz marmórea.[9]

 

Há certos sítios da alma consagrados

E da tua lembrança alumiados

É ali que vou rezar as minhas preces.[10]

 

            O crescente mal-estar que percorre a europa, ao longo da fase final do século XIX, numa onda de descontentamento face às instituições liberais que se popularizaram um pouco por todo o velho continente desde o ínicio de século, levou à procura de novas soluções para ultrapassar os defeitos e obstáculos que maculavam os sistemas políticos filhos da Revolução Francesa.

            O municipalismo constituiu uma das principais componentes teóricas dessas novas doutrinas políticas que surgiam ou ressurgiam, com novos paramentos, com especial incidência em França, transmitindo-se rapidamente aos países ibéricos.

            No caso português, o municipalismo surge como um importante elemento no comentário e na oposição ou aceitação das sucessivas reformas administrativas que, nos anos de 1836 1842, 1870, 1886, 1892, 1896 e 1900, sucessivamente se aplicam no espectro da Monarquia Constitucional. Independentemente do comentário que os autores municipalistas ou centralizadores fizeram a estes documentos legais, que entre si representam diferentes tendências na forma de reordenar administrativamente o território, um dos principais argumentos entre os municipalistas passa pelo passado traumático da transição da Monarquia Tradicional para a Liberal, onde a aplicação de novos paradigmas jurídico-políticos levaram a que o número de concelhos no Portugal Continental e Ilhas se visse reduzido de 796 para 351, assim como à construção de novas realidades no âmbito da administração local, o Distrito e o Governo Civil, que conheceram até aos anos 50 do século XIX uma forte oposição popular.

            Assim, o municipalismo recolhe os apoios de todos os quadrantes ideológicos que se opõem às fundações do regime inaugurado a 1834, com a tónica comum de que este procurou enxertar no país um conjunto de instituições estrangeiras que estão em desacordo com a estrutura psicológica, social, religiosa e moral dos portugueses. Vemos então autores de diferentes partidos e causas, do miguelista Pinho Leal ao “socialista catedrático” Oliveira Martins, da Cartilha Republicana à A Nação, a defenderem uma nova organização territorial que tenha em conta as peculiaridades de um povo, não só do ponto de vista histórico, como religioso, étnico, social, psicológico, etc[11].

Dois municipalismos

            Na sua Teoria do Município, António Sardinha lança o seu testemunho mais completo daquilo que, na sua concepção, é a justificação e a orgânica de uma organização municipalista em Portugal. Continuador de uma perdida tradição medieval, este municipalismo é anti-capitalista, anti-individualista e anti-democrático.

            O municipalismo de Pascoaes encontra-se esparsamente entre a sua obra e assume um carácter igualmente identitário - “o fim da Renascença lusitana é combater influências nefastas ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual”, preconiza um ideário colectivista e comunitário e alimenta-se, também, da memória de uma “democracia medieval”. Assume um papel político mais relevante, uma vez que em A Arte de Ser Português, Pascoaes admite a possibilidade de os municípios elegerem, em órgão colegial, os Presidentes da República.

            Podemos, assim resumir os pontos que unem estas duas teorias municipalistas: apelam à renúncia de modelos estrangeiros, preconizam um modelo ligado ao carácter específico do povo português e vêm a participação activa na política municipal como o espaço privilegiado do cidadão.

O problema histórico

            A visão municipalista comunga de valores partilhados com o corporativismo – mesmo entre os autores liberais que, defendendo um estado descentralizado, não preconizavam um retorno ao modelo social de ordens ou estamental do Antigo Regime e da Idade Média período no qual estas ordens (os parlamentos, as corporações, os estados provinciais, etc.) existindo paralelamente ao absolutismo, reconhecem ao imperador (ou ao rei) uma autoridade divina[12].

            Se no Absolutismo vemos uma progressiva centralização do poder político, esta encontrava-se sempre limitada pela importância do direito consuetudinário e pela própria doutrina jurídica milenar europeia.

            O recrudescimento do poder oligárquico nas municipalidades do mundo mediterrânico, ao longo do século XVIII, quando muito, demonstra a dependência da Coroa perante aqueles que detêm o controlo direto e efetivo dos concelhos.

            Portugal, até ao século XIX, assiste ao bipolarismo Rei/Câmaras, as duas forças políticas do Reino, uma tendo por horizonte um poder absoluto, ainda que conte com insuficientes meios para tal demanda, a outra, ainda que muitas vezes decisiva, fragmentada[13] e ferozmente a-regional. Em Castela, tal como cá, cada município constituía um “universo cerrado”[14].

            Permanecerão nas diferentes unidades territoriais, sem grandes riscos para as grandes monarquias, persistentes valores não-estruturais, como os culturais e os simbólicos. Sem grande risco? A intimidade dos valores fertiliza o terreno para os compromissos e para as convenções sociais – invisíveis, espontâneos, escapam ao controlo da eficácia periférica da coroa. O poder não oficial das picole patrie, pujante na ausência do poder oficial, mantém-se próspero no vazio deixado pelo direito letrado[15].

O Municipalismo e a inevitável estadualidade

A centralização e o triunfo da estadualidade e da sua estrutura burocrática fez-se articulando-se a Instituição, o Aparelho, com o jogo da variabilidade geográfica, económica e sócio-política, do comportamento cultural e religioso, ideológico, patriótico e militar. Lentamente o estado conduz a autonomia local para o exercício de funções instrumentais para a administração estatal[16], triunfando totalmente sobre as resistências dos direitos locais ao longo da Era Revolucionária.

            A municipalização proposta tanto por Pascoaes como por Sardinha são sintomáticas deste triunfo da estadualidade. Se na Idade Média o concelho é um dos jogadores num cenário em que os poderes dançam concêntricamente à volta do rei, já estes municipalismos (saudosista e integralista) se integram, plenamente, nas estruturas do Estado, pretendem envolver-se com o Estado e preencher o Estado, substituindo as estruturas alógenas e hostis ao Bem Comum, como os partidos políticos e as seitas, que o controlam.



[1] PASCOAES, Teixeira de. Verbo Escuro. Rio de Janeiro: Ed. Álvaro Pinto, 1923, pág. 59.

[2] PASCOAES, Teixeira de. Terra Proibida. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, 243.

[3] SARDINHA, António. Pequena Casa Lusitana. Porto: Livraria Civilização. 1937, pág. 36.

[4] SOUSA, Maria José Alves. O nacionalismo em Teixeira de Pascoaes. Porto: FLUP, Dissertação de Mestrado. 1988, pág. 8.

[5] RICOEUR, Paul. Le Mémoire, L’Histoire, L’Oubli. Paris: Edition du Seuil, Septembre 2000, pág. 98

[6] SARDINHA, António. Antologia Poética. Lisboa: Guimarães Editores. 1960, pág. 76.

[7] Idem, pág. 81.

[8] Idem, pág. 88.

[9] PASCOAES, Teixeira de. Terra Proibida. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, pág. 220.

[10] Idem, pág. 244.

[11] CATROGA, Fernando. Natureza e História na Fundamentação do Municipalismo – da Revolução Liberal ao Estado Novo.Estudos em homenagem a Luís António Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pág. 415.

[12] LOUSSE, Émille. La société d’ancien régime. Louvain: Éditions Universitas, 1952, pág. 67.

[13] MAGALHÃES, Joaquim Romero. Concelhos e organização municipal na época moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2011, pág. 124.

[14] VILLAS TINOCO, Siro. La ciudad, las ciudades y la monarquía en la Castilla mediterránea. FERRERO MIRÓ, Remedios (coord.). Autonomía Municipal en el mundo mediterráneo. Ed. Fundación Professor Manuel Broseta y Corts Valencianes, 2002, pág. 251.

[15]  HESPANHA António Manuel, As Vésperas do Leviatã: Instituições e Poder Político. Portugal – séc. XVII, Coimbra: Almedina, 1994, pág. 455.

[16]  D’AGOSTINO, Guido. Tra politica municipale di stati e monarchia e percorsi di adattamento delle cittá: Un tema generale di storia europea tardomedievale e moderna. FERRERO MIRÓ, Remedios (coord.). Autonomía Municipal en el mundo mediterráneo. Ed. Fundación Professor Manuel Broseta y Corts Valencianes, 2002, pág. 116.


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"(...) as leis não têm força contra os hábitos da nação; (...) só dos anos pode esperar-se o verdadeiro remédio, não se perdendo um instante em vigiar pela educação pública; porque, para mudar os costumes e os hábitos de uma nação, é necessário formar em certo modo uma nova geração, e inspirar-lhe novos princípios." - José Acúrsio das Neves