A
palavra cantada – Pátria e Memória na poesia de Pascoais e Sardinha
Como
alguns dos leitores mais velhos devem recordar-se, a lareira ocupou em tempos
um lugar proeminente na composição da sala e no quotidiano da família
portuguesa. As lareiras desempenhavam a função essencial de aquecer casas,
corpos e corações, facilitando a criação de um lar e comida quentes. Era também
à volta da lareira que muitas famílias se reuniam para, especialmente nos dias
mais frios do ano, conviver, relatar as façanhas do dia-a-dia, relembrar as
velhas glórias, aconselhar os mais novos e acomodar os mais velhos. Hoje em dia,
perante as soluções disponíveis que nos protegem do frio, do escuro e até do
tédio, a lareira vê-se encostada a um canto da sala, quando existe sequer, muitas
vezes para efeito puramente estético, substituída na sua essência pela
alienação egoísta da televisão.
Espaço
místico e simbólico, a lareira é a representação do lar doméstico, local das
primeiras cogitações, das primeiras experiências, dos momentos fundadores de
homens e povos. É Teixeira de Pascoaes quem a define:
É
o ambiente da Intimidade profunda, do divino Alheamento, em que a minha alma,
cantando baixinho, parece adormecer alguém que vive afflicto. Em ti, ó velha lareira, suja de cinza e
fumo, pelos montes de inverno, eu sinto que vivo, e a sombra que projecto ao
clarão do teu fogo, sorri, voltado para Deus...
As
lareiras das casas antigas assistem ao passar das gerações unidas à volta do
fogo, unindo as gerações do presente ao passado, marcando a própria geografia
e, assim, o próprio Poeta:
O fumo das lareiras, no ar, se eleva
E toma negro vulto a fria terra.
E vejo-a desgastar a minha imagem,
E faleço nas sombras da paisagem.
Sardinha
e Pascoaes
Qual
é a validade de, nestas primeiras décadas do século XXI, sentar Pascoaes e
Sardinha à mesma lareira, conduzindo o seu diálogo num tom de amistosa
concordância, como se se tratassem de dois anciãos a contar histórias aos mais
novos?
Apesar
das diferenças fundamentais entre o pensamento do fundador do Integralismo
Lusitano e o fundador da Renascença Portuguesa, podemos notar nas suas obras e nos
seus artigos n’A Nação e n’A Águia, respectivamente os órgãos de
comunicação oficiais dos movimentos que encabeçavam, assim como noutros jornais
e revistas, vários pontos em comum que uniam os seus nacionalismos. O folclore,
a paisagem e a identidade local estão entre esses ingredientes que ambos
autores propunham como essenciais para reabilitar uma pátria que acreditavam
estar em desesperada necessidade de renascer.
Este
renascimento impunha um retorno às origens, no sentido de voltar ao trabalho da
terra, na memória dos primeiros povoadores da era afonsina
Voltemos
à raiz! E ao chão lavrado
Sobre
o que houver de Portugal passado
Que
Portugal de novo se edifique.
O
exercício implica não um retrocesso civilizacional, mas a redescoberta de um
caminho ou experiência de pendor místico e até religioso
Parte! Regressa, enfim, ao Paraíso!
Culltivarás aquela terra antiga
Com as tuas próprias mãos,
restituindo-a
Ao primitivo e mágico esplendor.
A
terra, repleta de significado e de personalidade, ensina ao Poeta os segredos
da Identidade e da Memória, memória essa que não está somente confinada a uma
religião ou a um grupo selecto, mas a um todo que define a comunidade.
Paul
Ricoeur definiu três fragilidades da identidade: a fragilidade face ao tempo,
de onde surge a necessidade do recurso à memória ou ao esquecimento, a
fragilidade face ao outro, de onde surge o contacto hostil e a fragilidade da
herança da fundação violenta, própria, por exemplo, das comunidades nascidas da
guerra, evento que constitui para uns glória e, para outros, humilhação. Sardinha, no poema
Évora-Cidade, procurou um compromisso com o passado da cidade alentejana, para
além das suas raízes cristãs e muçulmanas, num canto que remetesse para a
origem e para a energia continuadora da Raça e para a promessa de um futuro
salvífico e divino
Sobre o Crescente e a Cruz, atrás do
arado
A Raça canta sempre e ainda espera.
Cheia de fé, semeia. E o grão sagrado
Muda-lhe a esperança em pão abençoado
Por cada primavera.
Sobe da estepe, quando a relha a
corta,
Não sei que incerta voz, que enlevo
esparso.
É cinza heróica, são ossadas nuas,
Toda a grandeza morta,
Rimando a intrepidez do velho sangue
Com o furor fecundo das charruas.
(...)
Deus quis-te bem, ó Évora-cidade!
Serás na eternidade
A salvadora mística do Mundo
A mística Jerusalém terrestre!
Vale
a pena ter em conta este aspecto de mestiçagem, mesmo num autor que não se
coibiu, em outros escritos, de criticar a mistura entre raças. Em Sardinha, a
palavra Raça tem muito de étnico, mas nem por isso o Amor, naquilo que o
cristianismo lhe emprestou de universal, se deixa de manifestar na sua poesia
De manhãzinha
Irão casar moiras e cristãos.
A
Terra, a Paisagem. Elementos de um todo superior, de uma pátria que está para
além dos símbolos mais óbvios, mais toscos, dos regimes políticos e das
religiões estabelecidas. Elementos que estão vivos – não servem apenas para ser
cantados, brandidos como um escudo. São forças que falam, mas que também ouvem.
Árvores da minha aldeia,
Eu quero-vos contar a minha História,
Quando vem do Marão a lua cheia
Do fio luz marmórea.
Há certos sítios da alma consagrados
E da tua lembrança alumiados
É ali que vou rezar as minhas preces.
O
crescente mal-estar que percorre a europa, ao longo da fase final do século
XIX, numa onda de descontentamento face às instituições liberais que se
popularizaram um pouco por todo o velho continente desde o ínicio de século,
levou à procura de novas soluções para ultrapassar os defeitos e obstáculos que
maculavam os sistemas políticos filhos da Revolução Francesa.
O
municipalismo constituiu uma das principais componentes teóricas dessas novas
doutrinas políticas que surgiam ou ressurgiam, com novos paramentos, com
especial incidência em França, transmitindo-se rapidamente aos países ibéricos.
No
caso português, o municipalismo surge como um importante elemento no comentário
e na oposição ou aceitação das sucessivas reformas administrativas que, nos
anos de 1836 1842, 1870, 1886, 1892, 1896 e 1900, sucessivamente se aplicam no
espectro da Monarquia Constitucional. Independentemente do comentário que os
autores municipalistas ou centralizadores fizeram a estes documentos legais,
que entre si representam diferentes tendências na forma de reordenar
administrativamente o território, um dos principais argumentos entre os
municipalistas passa pelo passado traumático da transição da Monarquia
Tradicional para a Liberal, onde a aplicação de novos paradigmas
jurídico-políticos levaram a que o número de concelhos no Portugal Continental
e Ilhas se visse reduzido de 796 para 351, assim como à construção de novas
realidades no âmbito da administração local, o Distrito e o Governo Civil, que
conheceram até aos anos 50 do século XIX uma forte oposição popular.
Assim,
o municipalismo recolhe os apoios de todos os quadrantes ideológicos que se
opõem às fundações do regime inaugurado a 1834, com a tónica comum de que este
procurou enxertar no país um conjunto de instituições estrangeiras que estão em
desacordo com a estrutura psicológica, social, religiosa e moral dos
portugueses. Vemos então autores de diferentes partidos e causas, do miguelista
Pinho Leal ao “socialista catedrático” Oliveira Martins, da Cartilha
Republicana à A Nação, a defenderem uma nova organização territorial que tenha
em conta as peculiaridades de um povo, não só do ponto de vista histórico, como
religioso, étnico, social, psicológico, etc.
Dois
municipalismos
Na
sua Teoria do Município, António Sardinha lança o seu testemunho mais completo
daquilo que, na sua concepção, é a justificação e a orgânica de uma organização
municipalista em Portugal. Continuador de uma perdida tradição medieval, este
municipalismo é anti-capitalista, anti-individualista e anti-democrático.
O
municipalismo de Pascoaes encontra-se esparsamente entre a sua obra e assume um
carácter igualmente identitário - “o fim da Renascença lusitana é combater
influências nefastas ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia
espiritual”, preconiza um ideário colectivista e comunitário e alimenta-se,
também, da memória de uma “democracia medieval”. Assume um papel político mais
relevante, uma vez que em A Arte de Ser
Português, Pascoaes admite a possibilidade de os municípios elegerem, em
órgão colegial, os Presidentes da República.
Podemos,
assim resumir os pontos que unem estas duas teorias municipalistas: apelam à
renúncia de modelos estrangeiros, preconizam um modelo ligado ao carácter
específico do povo português e vêm a participação activa na política municipal
como o espaço privilegiado do cidadão.
O
problema histórico
A
visão municipalista comunga de valores partilhados com o corporativismo – mesmo
entre os autores liberais que, defendendo um estado descentralizado, não
preconizavam um retorno ao modelo social de ordens ou estamental do Antigo
Regime e da Idade Média período no qual estas ordens (os parlamentos, as
corporações, os estados provinciais, etc.) existindo paralelamente ao
absolutismo, reconhecem ao imperador (ou ao rei) uma autoridade divina.
Se
no Absolutismo vemos uma progressiva centralização do poder político, esta
encontrava-se sempre limitada pela importância do direito consuetudinário e
pela própria doutrina jurídica milenar europeia.
O
recrudescimento do poder oligárquico nas municipalidades do mundo
mediterrânico, ao longo do século XVIII, quando muito, demonstra a dependência
da Coroa perante aqueles que detêm o controlo direto e efetivo dos concelhos.
Portugal,
até ao século XIX, assiste ao bipolarismo Rei/Câmaras, as duas forças políticas
do Reino, uma tendo por horizonte um poder absoluto, ainda que conte com
insuficientes meios para tal demanda, a outra, ainda que muitas vezes decisiva,
fragmentada
e ferozmente a-regional. Em Castela, tal como cá, cada município constituía um
“universo cerrado”.
Permanecerão
nas diferentes unidades territoriais, sem grandes riscos para as grandes
monarquias, persistentes valores não-estruturais, como os culturais e os
simbólicos. Sem grande risco? A intimidade dos valores fertiliza o terreno para
os compromissos e para as convenções sociais – invisíveis, espontâneos, escapam
ao controlo da eficácia periférica da coroa. O poder não oficial das picole patrie, pujante na ausência do
poder oficial, mantém-se próspero no vazio deixado pelo direito letrado.
O
Municipalismo e a inevitável estadualidade
A centralização e o
triunfo da estadualidade e da sua estrutura burocrática fez-se articulando-se a
Instituição, o Aparelho, com o jogo da variabilidade geográfica, económica e
sócio-política, do comportamento cultural e religioso, ideológico, patriótico e
militar. Lentamente o estado conduz a
autonomia local para o exercício de funções instrumentais para a administração
estatal, triunfando totalmente
sobre as resistências dos direitos locais ao longo da Era Revolucionária.
A
municipalização proposta tanto por Pascoaes como por Sardinha são sintomáticas
deste triunfo da estadualidade. Se na Idade Média o concelho é um dos jogadores
num cenário em que os poderes dançam concêntricamente à volta do rei, já estes
municipalismos (saudosista e integralista) se integram, plenamente, nas
estruturas do Estado, pretendem envolver-se com o Estado e preencher o Estado,
substituindo as estruturas alógenas e hostis ao Bem Comum, como os partidos
políticos e as seitas, que o controlam.