quinta-feira, 26 de maio de 2011

Contrarrevolução

Compreenda, Rui, que no que toca à subjectividade dos temas, a oposição entre ruptura e mudança não é de todo óbvia. Uma ruptura pode dar-se num contexto revolucionário para substitutuir um regime político cuja duração no tempo e na história tenha sido efeméride. E se mudança for para si sinónimo de Reforma, então essa mesma Mudança pode ter efeitos mais radicais que uma Ruptura. A abolição da escravatura, que foi feita em sistema de Reforma na grande parte das nações ocidentais, é um evento histórico que representa, especialmente em alguns territórios, uma transformação radical da realidade social e política e económica. Só nos EUA esta Reforma implicou a criação e destruição de um regime político.

Assim, antes de me apontar os "erros intelectuais" presentes no meu texto, compreenda que nem eu tenho o domínio total das definições que o Rui usa, nem vice-versa, porque não é uma discussão propriamente académica.
Dessa forma, avanço devagar para não surgirem mais mal-entendidos, como o problema do personalismo-individualismo, quando num contexto absolutamente diferente usei a palavra indivíduo e o Rui pensou, magnificamente, ter-me descoberto a "careca".

Chamo-lhe a atenção para o facto de o Rui estar a usar a mesma crítica para o Tradicionalismo que usou para o Conservadorismo - e mais precisamente, para a leitura deficitária que alguns conservadores têm de Oakshott. Mas atendendo à crítica lançada a Oakshott, o Tradicionalismo não cai na mesma falácia - é em Oakshott que não existe mais critério além das práticas aceites pela sociedade. Entre um conservador destes e um anarquista existe apenas uma diferença - a total submissão à ordem social vigente.

O Tradicionalismo apresenta uma perspectiva completa do Homem. É esta perspectiva integral do Homem que nos leva a defender a necessidade de defender a Contrarrevolução. O critério que a invalida é completamente relativista, pois esta pode ser comparada a uma proibição de exercer a legítima defesa sobre um assaltante. Se a ordem orgânica social de uma sociedade tradicional é afectada por uma revolução - então compara-se este caso ao outro de âmbito penal, em que um bem jurídico é ameaçado pela conduta hostil de um outro indivíduo. Mesmo que esse bem jurídico pareça, à luz do delinquente, como um bem jurídico inferior, não é por isso que o visado pela agressão não se deva defender. Assim, enquanto a Revolução desprezou a Religião, as Liberdades, a Propriedade, etc., a Contrarrevolução tem o dever de restabelecer estes valores pelos meios que lhe proporcionam as circunstâncias. Tudo isto insere-se numa hierarquia de valores que une, e dizemo-lo sem problemas, o político e o transcendente. Uma ideia de Bem Comum e de Estado.

O mesmo princípio aplica-se ao problema da escravatura. Num contexto utilitário, de puro conservadorismo, justifica-se a permanência da instituição. O que o Rui vai-se esforçando por não acreditar é que numa "Ordem Natural" (que nada tem a ver com o Direito Natural, uma vez que este não é decifrado nas estrelas apenas pelo exercício daquilo que nos parece, a cada um, "natural" de se fazer) anarco-capitalista seria perfeitamente natural também. Quando lemos Santos Justo sobre o direito privado romano, ou os estudos históricos de Duby e o mais recente de Grénouille, percebemos que a escravatura foi considerada, ao longo da história, mais como um vínculo social proveniente de uma situação de perda de autonomia pessoal do que a vontade de criar trabalho não-remunerado - e que as situações modernas de quase-escravatura são mais penosas e insuportáveis que as antigas, uma vez que as actuais são propositadamente cruéis e desumanizantes e obtêm carta-branca dos estados e das sociedades - e que foram precisamente as novas concepções da metafísica que criaram as bases doutrinais para que a Humanidade compreendesse a escravatura como algo Mau, ainda que funcional.

Termino assim dizendo que nem este texto procura fixar a posição tradicionalista a uma posição fixa - talvez a pequena parte que eu citei foque esse ponto especialmente, mas o mesmo excerto contraria essa ideia quando afirma que "Se uma dada instituição, como a Instituição Real por exemplo, foi derrubada, é decerto contraproducente tentar voltar atrás e reerguê-la tal como existia, mas deverá ser observado se a função que essa instituição desempenhava encontrou um substituto capaz."

«Não somos conservadores - dada a passividade que a palavra ordinariamente traduz. Somos antes renovadores, com a energia e a agressividade de que as renovações se acompanham sempre. O nosso movimento é fundamentalmente um movimento de guerra. Destina-se a conquistar - e nunca a captar. Não nos importa, pois, que na exposição dos pontos de vista que preconizamos se encontrem aspectos que irritem a comodidade inerte dos que em aspirações moram connosco paredes-meias. É este o caso da Nobreza, reputada como um arcaísmo estéril em que só se comprazem vaidades espectaculosas. A culpa foi do Constitucionalismo que reduziu a Nobreza a um puro incidente decorativo, volvendo-a numa fonte de receita pingue para a Fazenda. Foge, cão, que te fazem barão!- chacoteava-se à volta de 1840. Mas para onde, se me fazem visconde?! E nas cadeiras da governança o cache-nez célebre do duque de Avila e Bolama ia esgotando os recursos do Estado em matéria de heráldica.»
António Sardinha

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"(...) as leis não têm força contra os hábitos da nação; (...) só dos anos pode esperar-se o verdadeiro remédio, não se perdendo um instante em vigiar pela educação pública; porque, para mudar os costumes e os hábitos de uma nação, é necessário formar em certo modo uma nova geração, e inspirar-lhe novos princípios." - José Acúrsio das Neves