Lembram-se da cena inicial "Música no Coração"? Julie Andrews, no papel de Maria aparece entre montanhas ora altivas, aconchegadoras ora severas, deixando-se levar por caminhos de plena liberdade, com seu coração palpitante na verdejante vista. Um claro, simples e sereno quadro de felicidade se vislumbra nessa cena.
É este o sentimento que me invade quando oiço o início do 2º Concerto para piano e orquestra, Opus 83 e Si bemol Maior, de Johannes Brahms - 1833 Hamburg, 1897 Viena.
O 1º andamento, um "Allegro non troppo", começa com um chamamento longínquo das trompas a que responde o piano com uma subida calma sozinho, como que imitando as primeiras. Este diálogo será, pouco depois, interrompido pelo pianista com uma fúria abrasadora tal que põe a descoberto uma impaciência romântica, um fogo que precisa de explorar e comunicar, até que chega a um pico - um dos muitos cumes que encontramos em tantas montanhas juntas - e logo de seguida a afirmação pela orquestra da tonalidade principal do concerto. Esta, já noutro carácter, mais encantantatório, revela-se no mesmo tema inicial, como que se nunca tivéssemos de lá saído, como se entrando na casa dos Von Trapp nos mantivéssemos dentro do campo. Sempre com o piano em grande sensibilidade e virtuosismo.
A multiplicidade neste concerto de relações motívicas, temas, orquestração muito bem feita, a disposição dos momentos de maior apogeu da orquestra e do piano, as surpresa harmónicas, o lirismo e a impaciência sempre em constante diálogo e combate. A conjugação da clareza clássica, da exploração muito barroca de diversos estados de alma e das belíssimas melodias - como não lembrar as declamações ao rubro de amor no 2º andamento "Allegro appassionato"? - e das passagens super virtuosas é inigualável. E que falar da elegância do 4º andamento, descrito pelo compositor como "Allegretto grazioso - Un poco più presto?"
Esta minha adoração por este concerto teve mais um momento de deliciosa e poderosa audição no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, numa sala bem composta de público, bonita e com boa resposta sonora do que é tocado no palco para o público, só havendo o senão de haver lugares no balcão onde não se vê o palco.Foram intérpretes a Orquestra Gulbenkian, dirigida pelo Meastro Lawrence Foster, com o Pianista Arcadi Volodos.
Foi um prazer poder ouvir aquele que alguns já antevêem poder vir a ser o próximo Grigory Sokolov, que é proclamado como o mais completo pianista vivo pela crítica e pelo público.
Só foi pena notar alguma indiferença, nalguns momentos de maior exaltação, por parte da orquestra, com entradas um pouco fora do contexto por parte de alguns instrumentistas de sopro e pela chefe do naipe de violoncelos, que no 3º andamento - com indicação "Andante - Più adagio" - preferia revelar toda a sua excentricidade e valor, como se nada mais existisse, ficando o piano sem qualquer poder.
Um andamento todo ele passado no quadro do 1º, mas agora estamos sentados, a reflectir sobre nós próprios.
E o extra? Delicioso: de Alexander Scriabin "Feuillet d’album" op. 45/1 mesmo sendo extremamente difícil de captar a atenção do público depois de um concerto tão intenso, que dura aproximadamente 45 minutos.
Fico com a sensação de vida plena sempre que acabo de ouvir este concerto.
É música profunda e inexplicavelmente cinematográfica.