Pergunta-se-me qual é a minha previsão sobre a música no Ano 2000.
(...)
Que sei eu? Muito possivelmente, tão-só aquilo que os homens quiserem que ela seja, visto que, em última análise, são eles, os homens, que a fazem e é para eles que a fazem. A menos que os homens do Ano 2000 entendam que não vale mais a pena fazer música (já hoje, neste ano da graça de 1966, há tanta alminha para quem ela não tem a mínima significação, que muito bem sem ela passa...). Ou entendam que a música é uma arte que, embora gloriosa na sua história, passou... à história. Ou que , enfim, à música por eles mesmos feitos prefiram a velhíssima música das esferas, ou a novíssima música dos
robots... Mas se ela, música, continuar a ser uma necessidade para esses homens do Ano 2000, natural será que eles a façam à sua imagem e semelhança, à imagem e semelhança dos seus sonhos, dos seus pensamentos, dos seus desesperos, das suas alegrias - se sonhos, pensamentos, desesperos e alegrias continuarem a ser o vero cerne do que no homem o torna verdadeiramente homem. E também de acordo com aquilo que sempre condicionou, estimulou ou renovou o processo artístico: o contexto social e o contexto técnico do momento.
E, assim, essa música do Ano 2000 será (...) muito naturalmente uma muito natural continuação da música do seu irmão barbado, o Ano 1000, contado este até às 0 horas do dia 31 de Dezembro de 1999. E como o trânsito de um milénio para o outro só será real no calendário e nas imaginações - pois que ao Tempo, contínuo na sua essência, tal trânsito é completamente indiferente - provável será também que, no dia 1 de Janeiro de 2000, a situação não difira grandemente da situação em que ela se achava na véspera. Provável ainda é que a música não seja una mas múltipla, isto é, como a dos Anos 1000, vária nos seus aspectos e manifestações, aos dodecafonistas, aos serialistas (ou o que então lhes equivala) opondo-se os tonalistas (ou o que então se entender por tal), os «concretos», os electrónicos, os aleatórios (a vingarem, e por que não?, estes modos de compor) fazendo negaças aos outros (como chamar-lhes? tradicionalistas?), aos que não seguem ou combatem esses modos de compor e a quem eles, os «concretos», os electrónicos, os aleatórios, chamarão possivelmente reaccionários, os compositores repartidos, como os seus pais e avós, em ala esquerda e ala direita, com um infalível centro, para garantia do equilíbrio e da estabilidade do mundo e das consciências... O pior é se aparecem, reincarnados, uns perigosos agitadores que se chamaram, por exemplo, Machaut, Gesualdo, Monteverdi, Rameau, Beethoven, Wagner, Debussy, Schönberg, Stravinsky ou Xenakis...
Então, adeus equilíbrio e estabilidade. Mas também se esses agitadores não voltarem, eles ou outros dos que são verdadeiramente o sal e o fermento da arte, poder-se-á conseiderar que a Música dos Anos 2000 é ainda, na realidade, uma entidade viva, dinâmica e prospectiva?
1966
A música no ano 2000, de Fernando Lopes-Graça
in Nossa Companheira Música, da colecção Obras Literárias, pela Editora Caminho