A encíclica papal Fratelli Tutti constitui um dos mais interessantes exercícios de doutrina social da Igreja e um dos documentos mais corajosos da Santa Sé.
A menção às consequências negativas da exploração capitalista, aos sofismas populistas que hoje em dia passam por "alternativas políticas", não são novidade no discurso do papa e são advertências que os cristãos devem ouvir e receber.
O papa recorda-nos das nossas velhas tradições jurídicas e afasta-nos para longe do individualismo liberal, que considera a propriedade privada como base da nossa civilização, trazendo-nos de volta aos princípios basilares herdados de Roma e Jerusalém:
"Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada».[95] O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»."
O documento leva-nos a reflexões importantes, como a que cada país deve chegar ao seu modelo de desenvolvimento e que não deve haver apenas um modelo, o modelo anglo-saxónico de capitalismo liberal ou o modelo germânico de socialismo de estado, a prevalecer:
"Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como modelos culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de inovar a partir dos valores da sua própria cultura."
No capítulo da defesa dos refugiados e dos desprotegidos, recordou-nos o Papa do dever de cada um no auxílio ao Próximo e no debelar dos grandes sofrimentos causados pelas guerras e pelas fomes, mas o Papa foi mais longe que qualquer comunicado oficial ao recordar o mal do tráfico humano perpetrado por muitas das ONG que se dizem humanitárias:
"Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis»."
Não é todos os dias que vemos reconhecida, em público, a existência destas organizações envolvidas no tráfico de migrantes.
Outro ponto interessantíssimo e vanguardista é o reconhecimento da presença dos lobbies de Silicon Valley no controlo da informação:
"Não se pode ignorar que «há interesses económicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático."
E se muitos acreditam que o Papa promove uma agenda de autodestruição, deixo aqui outras citações:
"Não se trata daquele falso universalismo de quem precisa de viajar constantemente, porque não suporta nem ama o próprio povo. Quem olha para a sua gente com desprezo, estabelece na própria sociedade categorias de primeira e segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos."
"Também não estou a propor um universalismo autoritário e abstrato, ditado ou planificado por alguns e apresentado como um presumível ideal para homogeneizar, dominar e saquear. "
Muitas outras coisas podiam ser ditas deste documento, um documento que combate as mentiras do liberalismo, do progresso imparável, do domínio da tecnologia sobre o homem e assume as verdades cristãs da Piedade e do Amor sobre todas as coisas.
Para mim, que o li, aconselho aos que não o leram, que o façam com olhos de ler, não com olhos de criticar. É difícil, tal a poluição literária que nos invade, mas é um exercício possível a mentes honestas.