Nossa Senhora da Conceição, Anónimo, Museu de Arte Sacra de São Paulo
«Estes dois abrigos-santuários do
Douro (Santuários do Cachão da Rapa e Pala Pinta), serão representantes de dois
níveis e dois cultos ontológicos e mitológicos: o nível ctónico, o reino da
Serpente e o nível celeste, o Reino do Sol. Solidariamente, culto dos
antepassados e seu saber oracular, concedido aos homens nessas salas secretas e
culto do Sol, concedido ao ar livre, face ao céu; dois aspectos dum mitologema
percorrendo outrora estas margens.
E que ainda se poderá testemunhar
no mesmo período neolítico no sul deste território: nos dólmens da Abelhoa e
Reguengos de Monsaraz, nos quais o Sol está gravado nesses monumentos votados
aos antepassados e à força da vida; e ainda no dólmen do Carrapito, na Beira
Alta, onde há figuras radiadas como sóis e uma linha ondulada, como serpente ou
água, indicando assim dois caminhos diferentes de culto, levando à mesma
finalidade salvífica.
O caminho da serpente, dos
abismos,levando ao país dos mortos ou das Ilhas
dos Viventes, seria aquele dominante na escatologia e história dos
portugueses. E ainda perdurando nas Barcas
de Gil Vicente e depois em Pessoa; as Barcas,
conduzindo à Ilha Perdida, como ao Paraíso: sempre na rota
do sol poente deste extremo finistérrico ocidental.
Depois, na história portuguesa, o
iniciado da serpente será o primeiro Descobridor navegante aportando às ilhas
atlânticas.
Rota da serpente, será ainda
antes, a testemunhada no nosso período da ocupação romana, pela Pateira da
Lameira, em Penamacor, onde o seu cenário infernal, com mortos na boca das
trevas, Perseu combate a Medusa, tentando evitar olhá-la directamente, perigo
mortal, mas só na imagem reflectida no seu próprio escudo. Depois desse perigo
mortal, será do Mar Tenebroso para o Descobridor português, novo Perseu.
Vários itinerários paralelos se
traçam nesses tempos, o infernal dessa Pateira e o celeste da lápide funerária
de cárquere onde o morto ascende ao céu no dorso de um cavalo. Esta lápide e esse
objecto votivo, testemunham uma diversidade escatológica de uma única
reintegração procurada, em níveis aparentemente opostos.
E, tal ainda na própria essência
do Sol, eles se conjugarão. Reintegração que se expressará nos Vedas, onde o Sol possui nomes de “resplandescente
e negro”, o que traz o dia e a noite. Tal como essa concepção védica, haverá na
nossa proto-história, a mesma união de contrários, como expressão da plenitude
ontológica do astro-rei. Suprema união ao ctónico e celeste, que terá sua
máxima expressão a nível nacional em Portugal e muito especificamente na sua
história da religião e da política, em si implicando concepções teológicas e
cosmológicas, no século XVII, quando o Reino proclamou a sua plena liberdade,
pela Independência perante Castela, e elegendo sua Padroeira Nossa Senhora da
Conceição, Rainha do Céu e da Terra tendo a seus pés a serpente e a lua, e ao
alto doze estrelas como resplendor. O rei D. João IV, coroando-a com a coroa
dos reis de Portugal. Eis um declarado acto político de teologia realizado pela
soberania portuguesa; e único na Europa da Idade Moderna.»
Dalila Pereira da Costa, As Margens Sacralizadas do Douro
Através de Vários Cultos
nota sobre a pintura: Imaculada Conceição, coroada por 12 estrelas, é apresentada sob a forma de Virgem do Apocalipse: e comparada ao Sol (Electa ut sol) e à Lua (Pulchra ut luna). Os outros emblemas são originários do "Cântico dos Cânticos" e da "Ladainha Lauretana": a Imaculada é Fonte dos Jardins (Fons Hortorum) ou Poço de Águas Vivas (Puteus aquarum viventium), Exaltada como o Cedro (Cedrus exaltata), Rosa Mística (Rosa mystica), Torre de Marfim (Turris eburnea), Escada do Paraíso (Scala paradisii), Estrela da Manhã (Stella matutina). A esses atributos místicos, junta-se a figura da serpente infernal esmagada pela Virgem, vitoriosa sobre o pecado original. A Ordem dos Franciscanos é evocada pelos dois cordões monacais que emolduram a imagem da Virgem, cada um deles com três nós, simbolizando os votos perpétuos de castidade, pobreza e obediência. A obra, executada provavelmente em São Paulo no século XVIII, pertencia ao Convento de Santa Clara de Taubaté.